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Catadores em movimento: políticas e artefatos urbanos em transformação
Daniel De Lucca Reis Costa*

Personagens urbanos que perfilam e transitam de diversas maneiras pela cidade, puxando carroças, cercados algumas vezes por verdadeiras matilhas de cães, ou então, simplesmente carregando sacos plásticos em seus braços e revirando materiais na rua, a presença dos catadores tem crescido, multiplicado e se afirmado cada vez mais na paisagem paulistana. As carroças, importantes instrumentos de trabalho que permitem, em alguns casos, carregar até 800 quilos, são, ao mesmo tempo, vetores de deslocamento, meios de transporte para o material coletado e “casa ambulante” para aqueles que vivem nas ruas. Circulando pela cidade, cruzando avenidas, atravessando calçadas e colocando em comunicação lugares, pessoas e coisas, os catadores conectam todo um meio de campo informal e nebuloso, situado justamente entre um pólo e outro da cadeia produtiva da reciclagem.

De um lado, temos a descontrolada, ininterrupta e profusa emissão de objetos tidos como inúteis ao mundo e nomeados, simplória e homogeneamente por nós citadinos, sob o signo do lixo, e de outro lado, vemos a possibilidade de reincorporação destes resíduos sólidos (nada residuais) no interior do sistema econômico através do abastecimento de todo um maquinário empresarial privado responsável pelo lucrativo trabalho de processamento e alteração destes materiais em mercadoria valiosa. É precisamente aí, entre estas duas pontas do longo trabalho de tradução que transforma o imprestável em prestável, do longo processo de mediação capaz de metamorfosear o rejeito urbano em recurso econômico, que diariamente um grande exército de trabalhadores precários, anônimos e, mormente, discriminados, agencia no “braço”, carrega “nas costas” e “puxa” com seu próprio corpo, toda uma multidão de coisas renunciadas por nossa modernidade urbana.

Em suas atividades ordinárias estes trabalhadores relacionam-se direta e continuamente com aquilo que higienicamente aprendemos a chamar de lixo, objeto historicamente significado como sujo, contagioso, poluente, inseguro e perigoso, em suma, vivem da relação com um artefato urbano que carrega em si mesmo toda uma valoração negativa saturada da idéia de risco. Risco que, por contágio semântico, prolifera simbolicamente seus atributos para todos aqueles que o manipulam. Por acaso não lavamos as mãos após o simples ato ritual de deixar o lixo doméstico no corredor do prédio?

Assim, este enorme exército de trabalhadores invisíveis, além de desenvolver atividades de fundamental importância para a manutenção da vida urbana em condições de trabalho extremamente precárias, quando não desumanas, são estigmatizados como marginais e acusados de sujar a cidade, quando, na verdade, a limpam.

São Paulo é a cidade com o maior número de catadores e com a maior produção de lixo urbano do Brasil (são mais de 15 mil toneladas de resíduos por dia para dois aterros sanitários com a capacidade em quase total esgotamento) e estes se distribuem estrategicamente pelo território metropolitano. Há uma distribuição geográfica desigual do lixo, em suas múltiplas variações “de qualidade”, que acompanha a concentração dos tipos de estabelecimentos comerciais e a intensidade das atividades econômicas geradoras de rejeitos. Assim, o centro de São Paulo, por ser uma nodalidade principal de um extenso sistema viário e de transportes metropolitano e caracterizar-se pela intensa atividade comercial e uso do espaço público, possui e é suporte de múltiplos componentes que incitam e suscitam a prática da catação nas ruas. Ali foi se constituindo toda uma tessitura de relações entre as populações de baixa renda em busca de recursos, a altíssima oferta de resíduos sólidos lançadas diariamente pelos estabelecimentos e a maior concentração de depósitos clandestinos em toda cidade (normalmente localizados nas zonas mais deterioradas e desvalorizadas da região).

Esta entremeada rede de relações conectando lojistas, escritórios, vendedores ambulantes, catadores, artefatos mobilizados e depósitos para a venda, tornou-se ainda mais complexa com a gradativa organização dos catadores em articulações políticas e cooperativas de trabalho. No centro, existem pelo menos oito unidades de trabalho que funcionam como cooperativas, associações ou espaços coletivos informais para atividade conjunta de acumulação, triagem e posterior venda do material, aquilo que eles, não à toa, chamam de “reciclagem”. Também é no Centro que se localiza a secretaria nacional de articulação do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis nascido em 2001 no contexto do Primeiro Congresso Nacional de Catadores de Materiais Recicláveis, em Brasília.

O MNCR é um movimento social que possui como meta a organização dos catadores, baseada nos princípios da economia solidária e da gestão integrada dos resíduos sólidos, buscando tecnologias viáveis que garantam o controle de toda cadeia produtiva, desde a execução da coleta até o beneficiamento final dos materiais. E para isso o MNCR tem articulado as diversas cooperativas de maneira a acumular material suficiente para a venda direta às grandes empresas de reciclagem. Este procedimento permite reter mais renda para os catadores já que não dependem dos “depositários”, “aparistas” ou “atravessadores”, figuras que atuam nesta rede acumulando o material vendido, por baixíssimos preços, pelos catadores individuais, e revendendo-o a preços mais elevados para as grandes indústrias. Deste modo, vão abiscoitando toda renda diferencial produzida pelo trabalho da catação.

A quase totalidade das cooperativas do centro de São Paulo surgiu a partir do difícil trabalho de organizações e entidades sociais com a população em situação de rua. Contudo, a esmagadora maioria dos catadores da cidade permanece agindo sem qualquer vínculo com cooperativas ou o MNCR. Muitos destes garimpeiros do urbano encontram-se em situações de instabilidade e fragilidade física e, em alguns casos, psíquica, tendo como único suporte estável de vida justamente a dependência de psicoativos “inibidores dos males cotidianos”.

Diariamente estes personagens urbanos também são focos de ações múltiplas efetuadas pelos agentes disciplinadores do espaço público. A vida dos catadores é alvo de ações da fiscalização e da limpeza urbana que periodicamente removem parte do material arduamente coletado, de intervenções assistenciais que buscam insistentemente retirá-los da rua e de autuações policialescas que acompanham as outras abordagens e sempre buscam neles “suspeitos” em potenciais. Por encontrarem-se comprimidos e tendo de viver e trabalhar no estreito espaço de diálogo entre a “questão social” e a “questão ambiental”, as autoridades ainda hoje titubeiam a respeito de qual órgão público deve lidar com este tema: habitação, saúde, trabalho e assistência social, de um lado, ou, meio-ambiente, serviços, obras e infra-estrutura, de outro?

E é justamente desta ambivalência produzida pelo confronto de dois regimes discursivos supostamente voltados a “naturezas” distintas, ambigüidade que embaraça as interpretações externas sobre tais figuras, que os catadores retiram sua força e potência. Em enunciações públicas, congressos, reuniões, seminários e manifestações de rua, afirmam positivamente sua existência lutando pelo reconhecimento da profissão: “catador não é marginal, é trabalhador”. Afirmam que prestam serviço público e que, além da prefeitura não precisar pagar para as empreiteiras recolherem, também poupam os aterros sanitários. Lançam também: “lixo não é lixo”. E neste deslocamento semântico tentam purificar simbolicamente os artefatos com que trabalham. Por fim dizem: “catador é um agente ambiental”. Neste processo político de reversão do estigma e reabilitação simbólica o que está em jogo não são somente coisas, mas primordialmente a definição sobre as coisas, sobre o que é lixo e sobre quem são os catadores.

 

diverCIDADE - Revista Eletrônica do Centro de Estudos da Metrópole