Reportagem
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Sarau da periferia: poética cidadã

Todas as quartas noturnas do bar do Zé Batidão são embaladas por um sarau, onde poetas e poetisas da periferia ganham voz e mostram, nas linhas e entrelinhas de seus poemas, disposição para mudanças, tanto no campo social, quanto no pessoal.
Karina Negreiros

A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros
Vinha da boca do povo na língua errada do povo
Língua certa do povo
Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil

Ao passo que nós
O que fazemos

É macaquear
A sintaxe lusíada”

Manuel Bandeira

Há um certo brilho no olhar dos que se amam. O sinal de uma estima mútua, uma segurança, uma sensação de pertencimento, uma vontade de ultrapassar limites, quebrar barreiras, contestar obstáculos. Esse brilho anda raro por aí. Vez por outra o encontramos num casal apaixonado que passa abraçadinho distraidamente pela rua. Na troca de olhares entre uma mãe e um filho. Na gratidão do amigo, cujos olhos sorriem pelo simples fato de ter sido assim escolhido.

Em um lugar muito especial, um boteco, como alguns o chamam, esse brilho, de tão abundante, se torna intenso, beirando o ofuscante. Lá, pessoas se abraçam, se ouvem e se aplaudem ao compartilhar sentimentos, emoções, angústias e prazeres destilados em forma de poesia. Toda quarta-feira, das 8 à meia noite, no bar do Zé Batidão, no chamado Sarau da Cooperifa, (Cooperativa de Cultura da Periferia) pode-se ver pessoas, em espírito comunitário, valorizando o outro, mas, principalmente sentindo e demonstrando aquilo que cantava a música “The Greatest Love of All” (o maior amor de todos): “aprender a amar a si mesmo é o maior amor de todos”. Isso pode não ser nenhuma novidade e parecer até um clichê, porém, nunca foi tão difícil, nem tão necessário, promover esse tipo de estima nas pessoas.

Longe de ser um lugar comum, este sarau abriga exemplos de pessoas que saíram de uma situação de maus tratos e desesperança, e hoje caminham confiantes e seguros para a frente do palco improvisado do bar e recitam orgulhosamente seus poemas. Rose Dorea, considerada a musa do sarau por ser uma espécie de anfitriã do evento, diz que “mulheres que antes apanhavam do marido tiveram coragem de dar um basta e hoje recitam suas poesias e até já 'arrumaram outro'. Adolescentes antes envolvidos com drogas, sem muito rumo na vida, hoje procuram ler cada vez mais para aprender palavras novas e bonitas para seus poemas”. Ela mesma é estudante e, assim que o dinheiro der, pretende cursar a faculdade de direito.

O tom e o teor dos poemas varia de poeta para poeta, mas é freqüente ouvirmos, no sarau, frases de forte consciência política e social, como “Acorde irmão, pare de reclamar e ajude a mudar. É tempo de voluntariado. Saiba que amanhã seu filho será você”, ou ainda “Enquanto eles passam Paraíso Tropical, a gente vive o paraíso tropical aqui”. De cunho mais literário, o poema (concreto) recitado no começo do evento pelo poeta periférico Claudio Laureatti retrata bem a mistura de vontades e paixões dos poetas do sarau:

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No Sarau da Cooperifa não há grandes heróis. Há uma maior admiração por um ou outro membro da comunidade, como o fundador do sarau, o poeta Sérgio Vaz, ou o poeta Sr. Lourival, ou ainda a musa, Rose Dorea. Mas, todos se sentem em igual nível de competência e capacidade. Todos querem se arriscar a falar em público e o Sales, que registra os pedidos, diz que as pessoas ficam bravas quando ele não consegue encaixar seus nomes para a apresentação. “É igual àquela música 'de tanto levar 'frechada' do seu olhar, meu peito até parece sabe o que?'”, brinca Sales, que também recita suas poesias.

Já a Gabriela, que vai toda quarta com as amigas Renata, Juliana, Ane e Lígia, para o bar do Zé Batidão surpreendeu-se ao ser chamada para o palco, pois não achava que, em um dia de casa cheia como aquele, seu nome, nem tão conhecido como o de outros freqüentadores, fosse ser levado em conta. “Sem você, a casa está deserta”, emociona-se ao lembrar em seu poema do dia em que o namorado foi assassinado na sua frente e da experiência de, nesse mesmo dia, também ter levado um tiro. Juliana, por sua vez,  relutou em visitar o sarau:  “achava que era uma frescura de intelectuais metidos a besta, mas quando vim e senti a energia desse lugar, não queria mais parar de freqüentar”.

Dessa forma, o heroísmo de fato reside no sentimento compartilhado por todos de que, como indivíduos, porém membros de um grupo maior, podem superar, com dignidade, suas dificuldades, tanto pessoais quanto sociais. A auto-estima gerada pela aprovação da comunidade gera toda uma sorte de iniciativas em cada membro. “As pessoas têm vontade de mudar as coisas, de buscar o melhor”, diz Rose.

Através do Sarau da Cooperifa, a comunidade descobriu que pode produzir cultura de boa qualidade e, principalmente, que fale na sua linguagem, dos seus sentimentos e de suas necessidades e vontades. Tanto os poetas quanto as poetisas da Cooperifa, quanto todos que ali pertencem, compartilham da mesma opinião sobre a importância do sarau: com o peito inflado e o eterno brilho no olhar, aprender o amor maior de todos, a auto-estima. E é esse amor a si mesmo, essa dignidade, esse respeito por si e pelo próximo, que poderá gerar cidadãos seguros, com uma sensação de pertencimento, uma vontade de ultrapassar limites, de quebrar barreiras e de contestar obstáculos. Se isso não for cidadania, o que mais será?

“Todos estão à procura de um herói
As pessoas precisam de alguém para respeitar
Eu nunca encontrei alguém que suprisse minhas necessidades
Um lugar solitário para estar
Então, aprendi a depender de mim mesmo
Decidi, há muito tempo atrás, nunca andar na
sombra de ninguém
Se eu falhar ou se for bem-sucedido
pelo menos eu vivo como acredito
Não importa o que eles tomem de mim
Não podem me tirar a dignidade.”


(Trecho de “The Greatest Love of All”, de Michael Masser e Linda Creed )

 

 

diverCIDADE - Revista Eletrônica do Centro de Estudos da Metrópole