A Juventude ainda pulsa

Apesar de o contexto histórico vivido pela juventude contemporânea ser tão ou mais caótico que o da juventude de 1960, a conduta dos jovens de cada período é muito diferente
Karina Negreiros

“Desde pequenos nós comemos lixo
Comercial e industrial
Mas agora chegou nossa vez
Vamos cuspir de volta o lixo em cima de vocês.
Somos os filhos da revolução
Somos burgueses sem religião
Nós somos o futuro da nação
Geração Coca-Cola.”
(Legião Urbana)

luta
Cena do Filme Clube da Luta
“ Somos os filhos do meio da história. Nenhum propósito ou lugar. Não temos uma Grande Guerra. Nenhuma Grande Depressão. Nossa grande guerra é uma guerra espiritual...nossa grande depressão é nossa vida. Fomos todos criados para acreditar que um dia seríamos milionários e deuses do cinema e estrelas de rock. Mas não seremos. E estamos lentamente assimilando esse fato. E estamos muito, muito putos com isso.” (Tyler Durden, personagem de Brad Pitt no filme Clube da Luta)

O que há de comum entre a citação de Legião Urbana e a do personagem de Brad Pitt? Ambas falam de uma juventude pós-revolucionária de forma pessimista e pejorativa. Ambas sugerem que tais jovens estão perdidos em um mundo pós-moderno, dominados pelo consumo e alienados pela mídia. Será que há algum fundamento nos cenários pintados por essas citações? Será que nossos rebeldes de hoje estão mesmo sem causa, ou incapazes de enxergá-la? Neste artigo, abordaremos essas e outras questões relacionadas à contínua interseção entre juventude e política ao longo da história.

Não há nada que descreva mais o estado de ser jovem quanto o espírito de aventura, a vontade de desafiar, de medir forças e de vencer. O adolescente começa em casa, normalmente pelos pais, e na escola, desafiando professores e coordenadores. Rebeliões de juventude começam com pequenos questionamentos. Uma nota ou uma bronca por eles considerada injusta, uma postura um pouco mais autoritária já são o bastante para despertar sentimentos de indignação em jovens corações. Revoltar-se é inerente ao amadurecimento. Dizer 'não' em vez de “sim, senhor”.

O psicanalista italiano Contardo Calligaris reflete:

“O fato é que a adolescência é uma interpretação dos sonhos adultos, produzida por uma moratória que força o adolescente a tentar descobrir o que os adultos querem dele. O adolescente pode encontrar e construir respostas muito diferentes a essa investigação. As condutas adolescentes, em suma, são tão variadas quanto os sonhos e os desejos reprimidos dos adultos. Por isso elas parecem (e talvez sejam) todas transgressoras. No mínimo, transgridem a vontade explícita dos adultos”.

Atitudes contestatórias, rebeldia e transgressão compõem, em maior ou menor grau, o processo de transição entre a infância e a vida adulta de qualquer ser humano.

Dessa forma, nada mais natural que os movimentos políticos de teor revolucionário, quer estudantis, quer não, estivessem quase sempre à incumbência dos jovens. Sempre em termos de adesão, quase sempre em termos de liderança. Trotski, por exemplo, participou, aos 18 anos, da oposição clandestina ao regime autocrático dos czares, organizando a Liga Operária do Sul da Rússia, pelo que foi preso no ano seguinte. Che Guevara entrou para política aos 25 e morreu 14 anos depois, em combate. Incontáveis são outros exemplos de jovens expoentes da participação em movimentos político-sociais. Mais numerosos ainda são os jovens anônimos que engrossaram as frentes contra os sistemas vigentes de sua época.
trotsky
Trotski

Se fizermos o recorte para o Brasil, mais precisamente para o período republicano (veja cronologia) percebemos que o pico do movimento político dos jovens brasileiros se deu justamente na época em que estivemos sob a égide de um regime extremamente opressor. O período da ditadura militar, que começou em 1964 e caiu em 1985. É claro que existiram outros regimes tanto ou mais opressores que esse no país. Vale lembrar os anos de repressão no governo de Getúlio, ou ainda os primeiros anos de nossa república. Mas, houve um contexto histórico mundial que influenciou a juventude de 1960 de tal forma que transformou os movimentos por ela engendrados nos mais notórios e emblemáticos modelos de luta estudantil.

Nas palavras de Zuenir Ventura:

“Na verdade, a aventura dessa geração não é um folhetim de capa-e-espada, mas um romance sem ficção. O melhor de seu legado não está no gesto – muitas vezes desesperado; outras autoritário - ,mas na paixão com que foi à luta, dando a impressão de que estava disposta a entregar a vida para não morrer de tédio. Poucas – certamente nenhuma depois dela – lutaram tão radicalmente por seu projeto, ou por sua utopia. Ela experimentou os limites de todos os horizontes: políticos, sexuais, comportamentais, existenciais, sonhando em aproximá-los sempre." (Ventura, 1988)

O mundo todo estava em efervescência. “Gerações inteiras se criaram à sombra de batalhas nucleares globais que acreditava-se firmemente, podiam estourar a qualquer momento e devastar a humanidade” (Hobsbawm, 1995). A década vivia a polarização entre os modelos de capitalismo e socialismo. Era o tempo de radicais transformações nos costumes, nas artes, e na música, do auge do movimento feminista. O marxismo humanista era pregado na Escola de Frankfurt. Era o tempo dos hippies. Sexo, drogas e rock'n'roll. Tempo em que se cumprimentava o amigo erguendo-se dois dedos em nome da paz e do amor. Era a época da guerra do Vietnã, do imperialismo ianque, das ditaduras militares na América Latina e do Maio de 1968.

Tal contexto não admitia neutralidade. Junte-se a tudo isso a natural predisposição dos jovens à conduta transgressiva e temos um período de posturas e atitudes radicais, onde o jovem foi protagonista e cujas conseqüências, quer a consideremos positivas, quer não, determinam a sociedade em que hoje vivemos. Em oposição, a juventude de hoje é a dita pós-revolucionária e pós-moderna, alienada e massacrada pelo excesso de informação e o impiedoso apelo ao consumo. Como na música da Legião, os jovens contemporâneos são os filhos (e netos) da revolução. Como no Clube da Luta, são nascidos no meio da história.

Esses rótulos fazem parte de uma crítica impiedosa que diz ter acabado o protagonismo jovem nas lutas políticas e sociais. Sobre isso refuta Cohn Bendit, ex-trotskista e um dos líderes do Maio Francês em uma entrevista para a Istoé em 1998:

“Esse discurso pejorativo sobre os jovens de hoje é completamente idiota. A grande diferença entre os jovens de 68 e os de hoje é que nós não tínhamos medo do futuro. O futuro era nosso e a nossa briga era para vivê-lo como a gente bem entendia. Contudo, nós não tínhamos razão em tudo. Falávamos em liberdade, desfilando com o retrato de Mao Tsé-Tung; outros protestavam contra o autoritarismo, carregando o de Fidel ou de Ho Chi Min (Istoé, 1998, p.138).

Mas o fato é que nosso contexto é quase tanto ou mais caótico que o dos anos 1960. Mesmo que, como brasileiros, não sejamos alvos diretos do terrorismo, vivemos, em maior ou menor grau, sob seu impacto e conseqüências. O imperialismo ianque “cresceu e apareceu”.

Estamos experimentando uma descomunal revolução nos costumes com nossa juventude cada vez mais cibernética e digital. Nossos sistemas econômicos estão tendo que se adaptar freneticamente às mudanças promovidas pela sociedade do conhecimento. É o tempo da globalização, do individualismo, do consumismo. No Brasil, temos a guerrilha urbana vivida em meio ao embate entre o tráfico e a polícia. Temos os escândalos de corrupção em série (por muito menos, os “cara-pintadas” já teriam saído às ruas).

Tal contexto não deveria admitir neutralidade. Mas, admite. Ou melhor, é forçado a admitir. Uma possível explicação se encontra no conceito de pós-modernidade, embora haja grande discordância quanto a definição e a pertinência do termo. Para o filósofo italiano Gianni Vattimo, a pós modernidade

“aparece como uma espécie de Renascimento dos ideais banidos e cassados pela nossa modernidade racionalizadora. Esta modernidade teria terminado a partir do momento em que não podemos mais falar da história como algo de unitário e quando morre o mito do Progresso. É a emergência desses ideais que seria responsável por toda uma onda de comportamentos e de atitudes irracionais e desencantados em relação à política e pelo crescimento do ceticismo face aos valores fundamentais da modernidade. Estaríamos dizendo adeus à modernidade, à Razão (Feyerabend). (…) Que esperança podemos depositar no projecto da Razão emancipada quando sabemos que o financeiro é submetido ao jogo cego do mercado? Como pode o homem ser feliz no interior da lógica do sistema, onde só tem valor o que funciona segundo previsões, onde seus desejos, suas paixões, necessidades e aspirações passam a ser racionalmente administrados e manipulados pela lógica da eficácia econômica que o reduz ao papel de simples consumidor” (Vattimo, 2001).

Então, podemos dizer que justamente esses individualismo e consumismo, característicos do chamado pós-modernismo, são os paralisadores do movimento estudantil e anestesiadores do nosso senso de ética? Será que isso explica por que os nossos jovens olhos conseguem assistir passivamente enquanto o presidente dos Estados Unidos promove seus disparates nos países detentores de petróleo ignorando o continente africano, que persiste abandonado, doente e faminto? Sob a luz desse raciocínio, creio que um verdadeiro jovem pós-moderno diria que essa minha última frase é piegas e procuraria, talvez, fazer um filme que abordasse essas questões sob um ângulo mais criativo. Logo em seguida, o veicularia no YouTube. Há várias formas de transgredir.

 

 
diverCIDADE - Revista Eletrônica do Centro de Estudos da Metrópole