Uso de substâncias psicoativas ilegais e juventude: algumas ponderações
Maurício Fiore*1
A junção entre o consumo de substâncias psicoativas ilegais, conhecidas comumente como “drogas”, e a faixa etária que se convencionou denominar juventude está bastante enraizada no senso comum, na gestão pública e nas pesquisas acadêmicas. E há motivos suficientes para que esteja. O problema é que esse par seja encarado como natural e imutável, o que ocorre também com a relação drogas e violência. Assim, algumas ponderações são necessárias.
Em primeiro lugar, o termo drogas já está bem distanciado do seu sentido farmacológico original e hoje designa um amplo leque de substâncias psicoativas, notadamente as ilícitas. São substâncias muito diferentes entre si, não apenas nas suas propriedades químicas, mas principalmente pela maneira como os diversos povos da humanidade, em diversos momentos de sua história, as consumiu. De substâncias de uso reconhecidamente milenar e cuja produção é exclusivamente agrícola até substâncias sintetizadas há menos de cem anos, como o MDMA (ecstasy) e o LSD. As ciências humanas, a psicologia e até mesmo as ciências biomédicas já demonstraram que o contato entre um ser humano e uma substância envolve outras variáveis tão importantes quanto os efeitos farmacológicos, exercendo inclusive influência nestes. Não se trata de negar que cada droga encerra efeitos determinados e sim de ampliar o espectro dessa determinação, caminhando para uma abordagem multidisciplinar da questão, sintetizada na idéia de que o consumo de drogas é um fenômeno biopsicossocial: há um corpo afetado por uma substância, há um indivíduo único que o fez, há um contexto sócio-cultural em que esse consumo se insere.
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Em segundo lugar, deve-se definir juventude, tarefa árdua e inexeqüível aqui. O conceito de juventude foi e é amplamente debatido, transitando das definições ligadas às pesquisas empíricas que necessitam de balizas claras (jovem é o indivíduo de 14 a 24 anos) até aquelas mais contestadoras e relativistas, como a de Pierre Bourdieu (a juventude é apenas uma palavra*2), passando por toda a literatura historiográfica (Phillipe Aries*3, para ficar apenas num excelente exemplo), que discutiu o surgimento e as transformações dessa categoria no Ocidente. |
Sinteticamente, a noção de juventude nos remete necessariamente a três critérios: uma faixa etária intermediária entre infância e idade adulta, a idéia de transição e, o que talvez mais chame a atenção, a idéia de formação. Embora não esgotem todas as idéias relacionadas ao conceito, esses critérios ajudam a delinear, ao menos, os seus contornos gerais.
Por que então o par drogras/juventude? O consumo de substâncias psicoativas atravessa a história da humanidade e em grande parte dos exemplos não há uma relação intrínseca entre jovens e este ato. Pelo contrário, os gregos, por exemplo, proibiam o consumo de vinho pelos jovens, a não ser que se adicionasse muita água. O tabaco e a maconha eram restritos aos mais velhos em muitas culturas, como a chinesa e a asteca. No entanto, há pelo menos um século, desde o momento em que o consumo de algumas substâncias psicoativas foi instituído em problema social relevante, mobilizando Estado e sociedade, os jovens foram colocados (e se colocaram) como protagonistas. Há uma série de motivos para tanto, mas, de certa forma, pelo próprio fato de a juventude ser, ela mesma, tornada problema social. Ou seja, jovens e drogas passam a ocupar, durante o século XX, lugar de destaque como preocupação e, como bem nota Helena Abramo*4, a juventude emerge nesse cenário através de sua faceta moralmente reprovável, a delinqüência. A relação entre jovens e drogas torna-se, assim, inevitável.
Haveria muito mais a dizer desse denso percurso que uniu, durante o século XX, drogas e juventude. Por hora, pode-se elencar três fatores que reforçam a ligação contemporânea entre consumo de substâncias psicoativas ilegais e juventude: 1. Os dados referentes ao padrão geral de uso de população em geral que, tanto no Brasil como em grande parte dos países, apontam para uma proporção maior de consumidores na faixa etária 14-24 anos; 2. Ao fato de o consumo juvenil alcançar maior exposição pública, já que essa esse tipo de comportamento é considerado arriscado e danoso para um período da vida tido como vulnerável e 3. O aumento da violência urbana, cuja motivação primordial é associada ao tráfico de drogas, tem na parcela jovem da população a maior parte das vítimas e também dos algozes. Seria possível agregar outros fatores, inclusive alguns de natureza antropológica, como o confronto geracional que opõe a novidade juvenil às tradições adultas. No entanto, creio que, como problema social, os três fatores apresentados permitem que passemos ao ponto final desse breve relato, aquele referente ao lugar do Estado.
Legislação e políticas públicas
Em primeiro lugar, devemos separar claramente as políticas públicas das normas jurídicas, comumente confundidas quando o assunto é o consumo de drogas. As normas jurídicas brasileiras atualmente criminalizam a produção, o comércio e o porte para consumo de drogas (aquelas consideradas ilícitas), posição questionada por diversos estudiosos do tema, entre os quais me incluo. Isso não significa nenhum posicionamento inconseqüente ou simplista, posto que a questão é complexa, mas apenas o questionamento de uma intromissão jurídica que além de injusta e arbitrária, é ineficiente em relação ao próprio objetivo que persegue: o consumo de drogas não diminui e o seu mercado paralelo violento causa muito mais vítimas do que a mercadoria que traficam. As alternativas se acumulam no cenário internacional e tendem a se impor a médio e longo prazo. Mas no caso do consumo dos jovens, a complexidade da questão cresce: qual a idade mínima para o consumo de substâncias psicoativas? Todas as substâncias se equivaleriam? Embora sejam perguntas relevantes e urgentes, o fato de não termos respostas prontas não serve como desculpa para o adiamento de um debate sobre a maneira pela qual a lei trata do tema drogas.
Já do ponto de vista das políticas públicas, entendidas como o conjunto de ações que os gestores públicos tem como obrigação empreender, obviamente respeitando as normas jurídicas, o consumo de drogas entre os jovens se apresenta como um desafio, demandando sensibilidade e coragem. Antes de tudo, os jovens nem sempre consomem substâncias psicoativas ilegais e, como já foi dito aqui, estão longe de esgotar o grupo de pessoas que o fazem. Além disso, existem pontos que se relacionam aos jovens e que são fundamentais para além do fenômeno drogas: educação, formação profissional e lazer, para citar os mais importantes.
No que diz respeito especificamente ao consumo de drogas, deve-se sempre ter em vista que o jovem consumidor de qualquer dessas substâncias psicoativas, legais ou ilegais, não tem apenas esse papel social. São estudantes, filhos, trabalhadores, skatistas, sambistas, roqueiros, esportistas, pobres, ricos, homens, mulheres, homossexuais etc. O consumo de drogas está inserido num repertório muito maior e o lugar dessa prática, dentre outras, é resultado de uma série de variáveis.
A minha experiência de pesquisa, confirmada em parte pela literatura, aponta a diversificação de repertórios culturais e a construção de responsabilidades como inibidores de um quadro no qual o consumo da substância alcance protagonismo frente aos outros aspectos da vida do indivíduo. Não há dúvidas de que as conseqüências do consumo de drogas podem ser dramáticas, não apenas pela possível instalação de um caso de dependência crônica, mas por efeitos secundários, como a própria violência e os acidentes automobilísticos. Mas o contato com as drogas não é unívoco e nem encerra uma dicotomia entre a abstinência segura e o inferno da compulsão. A gestão pública não pode, portanto, ignorar que o consumo de drogas se apresenta em formatos socialmente diversos, demandando políticas diversas: uma política para jovens moradores de rua não pode ser o padrão para lidar com jovens consumidores de ecstasy de classe média, nem tampouco o inverso.
A esse respeito, as políticas públicas, cujo pressuposto se associa ao que se convencionou chamar de Redução de Danos, têm alcançado bons resultados, principalmente entre os jovens. Não obstante seja um conceito controverso, a Redução de Danos tem como pressuposto a idéia de que a decisão pelo consumo de drogas é individual e cabe ao Estado tornar acessível as informações científicas sobre o tema, orientando para que o uso possa ser, em vez de simplesmente evitado, o mais seguro possível. Por exemplo, a evitação de combinações perigosas, alerta sobre os excessos e prevenção do consumo freqüente. A redução de danos não prevê, entretanto, que o Estado abra mão de medidas de caráter coercitivo, como o limite de idade para o consumo e a restrição de horário e local, mas está pautado numa gestão pragmática do problema, despindo-se dos ditames moralistas que, no mais das vezes, têm sido, ao contrário do que argumentam seus defensores, empecilhos para uma gestão estatal eficiente e democrática da questão do consumo de drogas pelos jovens.
*1 Mestre em Antropologia Social pela USP, doutorando em Ciências Sociais pela Unicamp e pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP) e do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos (NEIP). É autor de Uso de “drogas”: controvérsias médicas e debate público, Campinas, Ed. Mercado de Letras, 2007.
*2 BOURDIEU, Pierre. "A juventude é apenas uma palavra". In: Questões de sociologia. Rio de Janeiro, Marco Zero, 1983.
*3 ARIES, Phillippe. História Social da Criança e da Família. Rio de Janeiro, LTC, 1981.
*4 ABRAMO, Helena Wendel. Cenas Juvenis. São Paulo, Editora Scritta, 1994.
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