Documentários
Em Trânsito capta dimensão humana dos deslocamentos
por Gilberto Stam
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São cerca de seis horas da manhã quando começa o culto evangélico dentro do segundo vagão do trem que sai da estação Itapevi e vai até a estação Julio Prestes. Um grande número de passageiros carrega uma bíblia na mão, enquanto alguns outros fazem pregações simultâneas, clamando em alta voz pelo nome de Jesus e do Espírito Santo. Antônio Alves da Silva, um dos pregadores, salta na estação da Lapa, mais de duas horas e meia depois de sair de casa para ir ao trabalho. |
Antônio é um dos personagens do filme Em Trânsito , de Henri Gervaiseau, coordenador do Núcleo de Audiovisual do Centro de Estudos da Metrópole. Através desse e de outros quatorze personagens o filme revela como a circulação pela cidade se relaciona com outras esferas da vida das pessoas, como o trabalho, lazer, vida social, religião e a violência. “Para esses personagens, assim como para todos os moradores das grandes metrópoles, o trânsito é um aspecto significativo da vida, não só pelo tempo gasto, mas porque acaba definindo a relação com a cidade, o acesso a serviços e oportunidades, e influindo na rede de relações das pessoas”, diz Gervaiseau.
A maioria dos entrevistados são usuários de transporte público, que se deslocam de suas residências na periferia para o centro da cidade onde trabalham. Ao mesmo tempo, o filme contrasta essas experiências com a dos motoristas de automóveis, motoboys , e das pessoas que andam a pé. Durante a filmagem, a câmera acompanha a perspectiva dos viajantes, revelando como as paisagens da cidade se descortinam ao longo de cada trajeto. Nos depoimentos, conhecemos um pouco mais da vida de cada um, e suas experiências no trânsito da cidade.
Virgínia Santos, uma das personagem do filme, é uma das centenas de milhares de pessoas que caminham para o trabalho por não ter dinheiro para pagar o ônibus, percorrendo 22 quilômetros diários. Tatiana Gatti, outra personagem, só anda de carro, e aproveita o trânsito para marcar encontros com os amigos, enquanto sua filha Vitória fez amizade com uma garota que vende balas no farol. |
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Carlos Alberto de Souza, conhecido como Kall, rapper e morador do Capão Redondo, é estudante de Ciências Sociais e integrante da ONG Criança Esperança. Em seu depoimento fala sobre os conflitos da exclusão social, e conta que já sofreu uma tentativa de assalto, da qual escapou alegando que era morador da periferia.
Mais do que uma denúncia do caos nos transportes ou uma análise técnica, o filme faz uma abordagem humana do significado do trânsito na vida das pessoas. O filme será exibido no festival de Gramado no dia 19 de agosto às 18h 30min, no Palácio dos Festivais. Foi também selecionado para a Jornada da Bahia, no final de agosto, e o Indie Festival, no início de setembro, em Belo Horizonte. Além disso, o filme já fez parte do Festival É tudo verdade 2005, e atualmente é negociado para o circuito comercial, devendo entrar em cartaz até o início de 2006.
Extraindo personagens dos fluxos
A primeira etapa na realização do filme foi definir qual o recorte a ser aplicado, já que o trânsito é um assunto praticamente inesgotável. A primeira proposta foi focar um centro nevrálgico, como o terminal Barra Funda. “No entanto, chegamos a conclusão de que não existe um ponto central, mas diversos pólos de convergência”, diz Gervaiseau. “A opção foi abordar o próprio trajeto, extraindo personagens dos principais fluxos da cidade”. Essa fase inicial de pesquisa e discussões contou com a colaboração de Renato Balbim, especialista em mobilidade urbana (veja matéria sobre a pesquisa de Balbim em “Trânsito: Pesquisador critica ênfase em tecnologia de controle do trânsito e defende nova abordagem da mobilidade urbana”).
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Para selecionar os personagens a cidade foi dividida em três grandes regiões, de acordo com a predominância de cada tipo de transporte: o trem na zona oeste, o ônibus na zona sul e o metrô na zona leste. Além disso, foram utilizados dados da pesquisa de Origem e Destino do metrô e o Mapa da Vulnerabilidade Social do CEM, que ajudou a escolher o local de moradia dos personagens de acordo com parâmetros socioeconômicos. |
Para selecionar os personagens a cidade foi dividida em três grandes regiões, de acordo com a predominância de cada tipo de transporte: o trem na zona oeste, o ônibus na zona sul e o metrô na zona leste. Além disso, foram utilizados dados da pesquisa de Origem e Destino do metrô e o Mapa da Vulnerabilidade Social do CEM, que ajudou a escolher o local de moradia dos personagens de acordo com parâmetros socioeconômicos.
A chamada pesquisa de personagens durou três meses, nos quais foi feito um primeiro contato com cerca de 100 pessoas. No final foram selecionadas dezoito pessoas para que fossem gravados os trajetos de ida e volta da casa pra o trabalho, sendo que apenas quinze entraram no filme. A gravação foi feita em duas etapas: o trajeto e a entrevista. “A gravação do trajeto foi feita antes, uma vez que a experiência compartilhada do deslocamento poderia enriquecer a conversa na hora da entrevista”, explica Gervaiseau. “Acompanhei as gravações do trajeto, mas deixava a conversa para o momento da entrevista, para preservar o frescor do primeiro contato”.
O filme buscou inspiração em duas referências principais: na gravação dos trajetos foi o cinema direto, que busca registrar situações cotidianas sem maiores intervenções; e nas entrevistas o diretor Eduardo Coutinho. Nelas, Gervaiseau não se limita a falar da questão do transporte, mas aborda a vida pessoal dos entrevistados, como origem, trabalho, vida social, religião e outros aspectos que apareciam nas conversas. “O objetivo era compreender as formas de articulação entre a vivência das pessoas no transporte com outras esferas da sua condição de existência”, diz o diretor. |
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