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Segregação
CEM defende importância do território para uma melhor compreensão da pobreza
por Gilberto Stam

Existe segregação em São Paulo? Se você lembrou dos guetos judeus durante a segunda guerra ou dos negros na África do Sul sob o regime do Apartheid, talvez diga que não. Mas, sob novas formas, a segregação é um fenômeno mais atual do que nunca. Ela se dá não mais por barreiras físicas ou legais, mas pela presença de regiões isoladas no espaço e com composição social homogênea. No caso das populações pobres, isso acarreta dificuldade de acesso a oportunidades de trabalho, aos benefícios gerados pelo Estado, serviços, iniciativas assistenciais e restrições de mobilidade.

O fenômeno vem sendo estudado pelas ciências sociais e humanas nas últimas décadas, mas ainda se conhece pouco sobre o que ele significa na prática: onde estão as pessoas segregadas? Como o isolamento e a desigualdade de acesso afeta a vida dessas pessoas? Como isso se relaciona com a pobreza e a desigualdade social? O Centro de Estudos da Metrópole está dando um passo importante para responder essas perguntas com o lançamento do livro São Paulo: segregação, pobreza e desigualdade social (Editora Senac, 329 páginas, R$ 55,00), uma reunião de doze artigos organizados por Eduardo Marques, diretor do CEM, e Haroldo Gama Torres, coordenador da Área de Transferência de Tecnologia.

O livro, resultado de cinco anos de pesquisa, dá ênfase à abordagem empírica, algo que nem sempre acontece no debate das ciências sociais. Por muito tempo, se discutiu pobreza e desigualdade social a partir de grandes teorias, que buscavam explicar as causas desses fenômenos. Embora isso tenha representado um avanço, a conseqüência disso foi que a pobreza passou a ser encarada como um fenômeno homogêneo, no qual os pobres sofreriam de carências igualmente graves e generalizadas.

Crescimento insustentável

Usando dados como os do censo do IBGE e técnicas de geoprocessamento para visualizar esses dados no espaço, está sendo possível, pela primeira vez, conhecer as manifestações específicas da pobreza, a partir de dados concretos. Os mapas elaborados mostram uma grande variedade de situações de pobreza e uma distribuição no espaço bem mais complexa do que geralmente é proposto. “Estamos fazendo um esforço para colocar a discussão sobre os problemas sociais em um novo patamar analítico”, diz Marques.

Uma primeira distinção pode ser feita entre a chamada periferia consolidada – onde já existem condições mínimas de infra-estrutura e urbanização como água, esgoto e coleta de lixo – e a fronteira urbana. As fronteiras urbanas são áreas de alto crescimento demográfico, seja pela imigração ou pelas taxas de natalidade. “Elas podem estar localizadas nos limites da mancha urbana, embora nem sempre isso aconteça e, geralmente, são áreas invadidas, sem nenhuma infra-estrutura, com uma dinâmica selvagem de crescimento e que representam um grande desafio para a administração pública” diz Torres.

São áreas onde os riscos sociais e ambientais se acumulam e se sobrepõem. “Nessas áreas, o investimento do Estado cai como uma gota em um vórtice de carências”, diz Marques. As fronteiras urbanas são locais que combinam fatores como riscos ambientais e ilegalidade, produzindo uma estrutura social que reproduz e propaga a pobreza. Nesses locais, além do isolamento e dificuldades de mobilidade, as relações também estão deterioradas, dificultando uma mobilização interna que possa articular uma pressão por políticas públicas favoráveis.

 

Redes sociais: uma porta de saída

Além dos já tradicionais indicadores socioeconômicos, a estrutura de relações sociais é outro fator importante para conhecer mais profundamente o fenômeno da segregação e da pobreza. Um dos motivos por trás do pior desempenho social em áreas segregadas provavelmente se dá porque as redes de relações sociais, que maximizam o aproveitamento dos recursos existentes, não são tão desenvolvidas. Essas relações são importantes porque é através delas que as pessoas ficam sabendo de oportunidades de ajuda ou de emprego, mas também são algo pouco considerado pelas abordagens tradicionais da pobreza.

Conhecer essas redes envolve um trabalho qualitativo, através de etnografias (entrevistas que procuram entender o modo de vida das pessoas), como foi feito na favela de Paraisópolis (apresentada no capítulo 8 do livro). Ao contrário de áreas mais segregadas, essa favela tem acesso privilegiado a serviços, emprego e iniciativas assistenciais por estar próxima ao bairro nobre do Morumbi, na zona sul de São Paulo (ver especial Paraisópolis, revista diverCIDADE nº. 3).

A favela de Paraisópolis difere de locais como Cidade Tiradentes (bairro que já está entre os temas de pesquisas do CEM), que apresenta formação mais recente e agrega pessoas que estavam num momento difícil de vida, como despejados ou pessoas que perderam a moradia em deslizamentos. Tudo isso, aliado à segregação territorial, faz com que a rede social de Cidade Tiradentes seja bem menos desenvolvida.

A pobreza real

O livro também dá um primeiro passo no sentido de conhecer melhor a relação entre pobreza e segregação, abordando aspectos mais específicos como a educação, a dinâmica social das favelas e o emprego. A educação é um exemplo claro do chamado efeito de vizinhança, o fato de que crianças em áreas segregadas tendem a ter pior desempenho em comparação com crianças de mesmo perfil socioeconômico que vivem em outras áreas.

Um dos motivos disso pode ser a influência exercida nas crianças pelas famílias e adultos da comunidade, que não oferecem um modelo no qual elas possam se espelhar. Ou seja, elevar o nível do ensino é um desafio que atravessa as gerações, e as políticas devem levar em conta a desvantagem real das crianças moradoras dessas áreas. Afinal, mesmo numa rede de ensino universalista há diferentes performances escolares dependendo de onde a criança reside.

No caso do emprego, as restrições de mobilidade, por conta dos elevados custos do transporte em áreas isoladas, dificulta o acesso a oportunidade de emprego (ver especial Trabalho e Desemprego, revista diverCIDADE nº. 4). Por outro lado, a segregação diminui o contato com regiões mais abastadas onde pode existir oferta. Além disso, viver em lugares onde só moram desempregados faz com que seja difícil para toda a comunidade conseguir emprego ou tentar gerar renda dentro da comunidade.

Por uma política pública mais eficaz

Como então cortar o ciclo vicioso da pobreza? Embora exista hoje um consenso sobre a necessidade de políticas de transferência de renda para famílias em situação de pobreza absoluta, existe muita polêmica sobre a melhor forma de fazer isso. A chave para o problema pode estar em políticas públicas que usem como critério de seleção o local de moradia dos beneficiados.

“Precisamos pensar em políticas públicas integradas, com ações simultâneas de várias secretarias e órgãos setoriais, buscando elevar rapidamente as condições de vida existentes em áreas particularmente problemáticas”, diz Torres. “Também pode ser uma boa alternativa combinar estratégias territoriais com outras utilizadas atualmente, como o cadastramento de beneficiários”.

Para embasar melhor essas decisões, o CEM continuará concentrando esforços na análise da reprodução das desigualdades sociais na cidade. Na próxima fase, será realizado um estudo comparativo da pobreza em São Paulo, no Rio de Janeiro e em Salvador. Será feita uma abordagem etnográfica – como a que já foi feita em Paraisópolis e está em andamento na Cidade Tiradentes – e outra analítica, através de mapas elaborados com dados do censo.

 

 

 

diverCIDADE - Revista Eletrônica do Centro de Estudos da Metrópole