Entrevista

Maria Rita Kehl fala sobre a influência das telenovelas

Em entrevista a revista diverCidade a psicanalista Maria Rita Kehl desvenda o fenômeno cultural das telenovelas do ponto de vista da psicanálise. A ensaísta, que defendeu tese de mestrado sobre o assunto e também é autora do livro Videologias , junto com Eugênio Bucci, observa como as novelas reafirmam o aspecto do brasileiro cordial e incitam o consumo mas, ao mesmo tempo, são também progressistas e propositivas.

Porque as pessoas se envolvem tanto com as novelas, a ponto de chorar, sofrer ou ficarem felizes junto com os personagens?

O que acontece com as pessoas diante da telenovela é o que ocorre em relação à ficção, em geral. As narrativas ficcionais, desde os primórdios - pense na Ilíada e na Odisséia, por exemplo - têm este poder de nos apresentar o mundo em que vivemos de uma forma mais ou menos organizada, mais ou menos transparente - coisa que o mundo, na verdade, não é - de modo a nos permitir uma identificação imaginária com as alegrias e sofrimentos dos personagens. A boa narrativa nos transporta ao mundo ficcional, e com isso também organiza uma versão fictícia, eu diria mitológica, da nossa realidade social.
Laços de Família, TV Globo - 2000  

As telenovelas, domésticas, cotidianas, misturam à vida normal das pessoas, essas outras vidas banais, corriqueiras e ao mesmo tempo excepcionais. O poder da imagem é ainda maior do que o da narrativa em palavras; por isso a telenovela é um dispositivo mitológico e também ideológico.

As novelas usam fórmulas repetitivas, com conflitos polarizados: antigo versus moderno, rural versus urbano, mocinho versus bandido etc. Porque essa fórmula faz tanto sucesso?

Em 1979, quando eu preparava minha tese de mestrado sobre as telenovelas, entrevistei Daniel Filho, então diretor do núcleo das telenovelas da Globo. Ele explicou a fórmula: como a novela tem que atingir o maior público possível, precisa ter conflitos e dramas em todas as faixas etárias, em várias classes sociais, e de preferência também pegar o meio urbano e o rural. Tenta fazer uma espécie de grande painel da sociedade brasileira, mas sem enfrentar seus verdadeiros problemas. É uma sociedade brasileira mais suavizada, mais palatável, na qual os conflitos sociais se traduzem em conflitos sentimentais - bem de acordo com nossa tradição "cordial".

Discutindo novela, as pessoas falam também sobre a sua vida e suas questões pessoais. Isso serve como terapia?

Como terapia, não sei. Pode servir como meio de elaboração - mas também como meio de alienação. Lèvi-Strauss, pesquisando o poder do xamanismo em tribos da Indonésia, entendeu que o mito tem um certo poder curativo; se o xamã faz uma narrativa mítica que inclui e explica o sofrimento de um doente, por exemplo, ele transforma o sofrimento privado, solitário e incompreensível (para o doente) em um sofrimento compartilhado incluído em uma "explicação" que o torna compreensível e, portanto, um pouco mais aceitável.
 
Marcos Frota vive um deficiente visual em América.
TV Globo - 2005.

O xamã talvez não cure as causas da doença, mas pode contribuir com a cura ao ajudar o doente a suportar sua angústia. Este é o poder das narrativas: elas nos ajudam a tornar o sofrimento individual mais suportável, porque nos parece menos solitário. Mas entender nosso sofrimento a partir do ponto de vista da ficção também é um modo de alienação: delegamos ao outro, pela via da identificação, a capacidade de nos "explicar" o que nos acontece.

O estilo de vida dos personagens influencia os desejos e os sonhos das pessoas? Como?

Se a novela promove identificações, como em um mecanismo de espelho - eu me vejo no outro, eu me compreendo de acordo com os termos propostos pelo outro etc. - ela também influencia desejos, sonhos, estilos de vida.

As novelas atingem todas as classes sociais, mas a propaganda veiculada é direcionada para as classes média / média alta. Como isso afeta as pessoas que não têm poder aquisitivo?

Este é um dos grandes problemas sociais gerados pela chamada cultura consumista: o apelo publicitário, assim como a telenovela, também se dirige, genericamente, a todos - mas poucos podem corresponder a ele. Isto aumenta a percepção da exclusão, e ao mesmo tempo dificulta que as pessoas que não têm acesso ao padrão de consumo proposto pela indústria do espetáculo se valorizem de acordo com outros parâmetros. O problema do consumismo não é que todos queiram comprar algumas coisas boas, mas que elas só consigam medir seu valor a partir de seu poder de compra. Assim, uma parte enorme da sociedade passa a se considerar realmente inferior à outra, por não ter acesso aos mesmos bens. Esta medida do valor humano pelo valor de compra dificulta a formação de outras formas de sociabilidade, de laços de solidariedade, de formas de expressão cultural que poderiam garantir dignidade aos pobres. Ao mesmo tempo, desmobiliza as condições da ação política, porque os sujeitos passam a desacreditar das lutas a longo prazo. O apelo do consumo é: você precisa ter tudo, já!

A novela contribui para o debate em questões polêmicas como o homossexualismo, racismo, preconceito, ações afirmativas etc.? Como?

Acho que, no Brasil, este é um ponto progressista da dramaturgia, pelo menos no que se refere à rede Globo, que é a mais avançada neste terreno. As novelas, minis-séries, etc, são politicamente conservadoras, ou conformistas, mas bastante progressistas em termos de moral e comportamento. Na medida em que isto não afete o Ibope, a Globo vem ganhando terreno para discutir temas ligados às minorias, aos homossexuais, aos idosos, negros, etc., sempre de uma forma muito respeitosa e propositiva.

 

 

diverCIDADE - Revista Eletrônica do Centro de Estudos da Metrópole