O
Sacrifício e seu uso típico-ideal na análise
do protagonismo feminino
Rafael
Duarte Oliveira Venancio
O
senso comum sempre prega que refilmagens ou seqüências
de filmes de enorme sucesso dificilmente dão certo. Em
turnê mundial, O Sacrifício (The Wicked
Man – EUA/2006 - 102 min), parece seguir essa regra
ao ter uma péssima recepção da audiência
e dos críticos. Só como um breve exemplo, o Hollywood
Reporter, veiculado pela agência de notícias
Reuters, anuncia logo na manchete que o filme com Nicolas
Cage é um “remake decepcionante”
e sentencia que a trama “acaba por suscitar mais risos
do que pavor”.
Entretanto, o remake do filme cult britânico
O Homem de Palha (1973) possui uma virtude quando comparamos
com o original. Graças à intervenção
do diretor e roteirista da versão atual, Neil LaBute,
podemos utilizar a trama em uma reflexão típica-ideal
do protagonismo feminino.
Antes de iniciar a reflexão propriamente dita, se faz
pertinente uma introdução acerca da chave de leitura
utilizada. O método típico-ideal ou tipo ideal
representa uma virada metodológica no campo da Sociologia.
Introduzido por Max Weber, o tipo ideal, em poucas palavras,
é “uma construção mental. Estrutura-se
pela exageração ou acentuação de
um ou mais traços, ou pontos de vista, observáveis
na realidade. Raramente se encontram, se é que se encontram,
na própria vida, fenômenos que correspondem com
exatidão ao tipo mentalmente construído”,
afirmam Adriana Vieira e Alexandre Carrieri. |
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Com
isso, podemos considerar as utopias e as distopias ficcionais como
tipos ideais. Tramas literárias como 1984, de George Orwell,
e Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, ou cinematográficas
como Metropolis, de Fritz Lang, e a trilogia Matrix,
dos irmãos Wachowski, podem ser utilizadas em reflexões
acerca de aspectos sociais que utilizam esse método.
O Sacrifício, diferentemente do original O Homem
de Palha, é uma distopia ficcional. Essa diferença
está na inversão do lugar da trama, pois, antes ela
estava situada em uma sociedade escocesa com reminiscências
celtas. Na versão de LaBute, Summersisle vira uma sociedade
matriarcal devido à preferência do diretor, em seus
filmes, por um ponto de vista mais feminista.
Na sociedade retratada, podemos dizer que o protagonismo feminino
é levado ao extremo, pois todas as posições
de poder são ocupadas por mulheres e há a restauração
do direito materno. Exemplos disso podem ser percebidos através
das cenas onde as mulheres se chamam de “Irmãs”
e na configuração dos nomes das garotas com sobrenome
das mães.
Olhares
de Engels e LaBute acerca da feminização do mundo
Essa feminização do mundo que, de certa forma, é
pregada por feministas de hoje e de ontem, possui diversos significados
analíticos. Para Friedrich Engels, em seu livro A Origem
da Família, da Propriedade Privada e do Estado, a situação
de exclusão e de luta de classes é originada pela
ascensão do direito paterno em detrimento do materno.
Explicada por ele através da alegoria do julgamento de Orestes
utilizada por Johan Bachofen, essa ascensão representaria
a derrota do sexo feminino na história universal e a degradação
da mulher em servidora. Porém, essa não seria a única
conseqüência para a constituição social.
Segundo Engels, em sociedades onde o direito materno era dominante,
como a gens iroquesa, havia um regime de igualdade social.
Citando o livro Ancient Society de Lewis H. Morgan, base fundamental
de sua análise, ele afirma que os membros da gens
iroquesa eram livres e todos tinham os mesmos direitos, sem qualquer
tipo de superioridade. “Liberdade, igualdade e fraternidade,
apesar de nunca formulados, eram os princípios cardeais da
gens. Essa era a unidade de todo um sistema social, a base
da organização da sociedade indígena”,
afirma Engels baseado em Morgan.
Conseqüentemente, a sociedade civilizada estaria baseada, então,
no direito paterno e na sociedade de classes. O objetivo de Engels,
ao fazer tal análise, era mostrar que a família, a
sociedade e o Estado nunca foram assentados nos mesmos padrões
organizacionais e que, graças a isso, era inevitável
o desaparecimento das ordens atuais dando um ar determinista à
revolução do proletariado.
Além disso, Engels abriu espaço para a interpretação
das feministas que o direito materno, ou seja, a feminização
do mundo seria a forma de revolucionar a ordem vigente, como lembra
o manifesto Para Pensar o Feminino, do Coletivo Lua. Entretanto,
alguns conceitos precisam ser matizados.
Para isso, vamos colocar a gens iroquesa de Engels como
tipo ideal do “protagonismo feminino como igualdade de classes”.
Em contraposição, utilizaremos Summersisle de O
Sacrifício como tipo ideal de contraposição,
ou seja, “protagonismo feminino como opressão”.
Essa constatação está na própria trama
cinematográfica, pois, basta perceber a clara ausência
de homens na sociedade matriarcal para onde Edward Malus (Nicolas
Cage) foi investigar a denúncia do sumiço de uma menina
da comunidade. Os poucos homens que aparecem são mudos, assustados
e, praticamente, escravizados como se fossem abelhas operárias.
Aliás, o simbolismo acerca das abelhas permeia o filme e
é essencial para a sua compreensão. De certa forma,
as “Irmãs” governadas por Irmã Summersisle
(Ellen Burstyn) se organizam como as abelhas que cultivam. Lembrando
sempre que há um forte imaginário feminino acerca
da organização das abelhas devido à baixa participação
dos machos e a função meramente reprodutiva, seguida
de morte, do zangão.
Esses elementos se acentuam já que o filme é um distopia
de terror e, como toda trama desse gênero, o temor tem que
ser cultivado. Toda a caracterização fetichizada dos
homens, representada pelas lições da professora Irmã
Rose (Molly Parker), designa o direito materno apenas como uma feminização
do direito paterno opressor.
Comparando tipos ideais
A
comparação de tipos ideais serve para refletir
acerca da posição atual da nossa sociedade, no
caso, acerca do protagonismo feminino. A tendência atual
é que o protagonismo feminino continue crescendo em nossa
sociedade, porém sempre há o receio de uma mera
troca de papéis, como mostravam charges do anos 40 aonde
as mulheres ia trabalhar e o homem executaria o papel de oprimido
na família e na sociedade.
Desse modo, a conseqüência do protagonismo feminino
fica mais próxima do tipo ideal de O Sacrifício,
onde podemos perceber apenas uma mera substituição
da opressão masculina pela feminina, do que o tipo ideal
da gens iroquesa. A saída seria despolarizar
as relações de gênero entre mulheres e homens,
como prega a teórica feminista crítica Nancy Fraser,
retratada no artigo Mulheres trabalhadoras
de ontem e de hoje, uni-vos? dessa edição.
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Interessante
pensar que, para chegar nessa proposição conclusiva,
Fraser também utilizou o método típico-ideal,
como base na noção de reconhecimento (seja de gênero,
de raça ou de opção sexual) e não o
protagonismo feminino.
Fica claro que, nesse começo de século XXI, a ascensão
da mulher como protagonista só está no seu início
e se configura como um amplo campo de estudos sócio-políticos,
familiares e econômicos. Assim, isso acaba por refletir na
produção cultural da atualidade. Uma leitura mais
atenta de filmes, considerados fracos ou não, como O
Sacrifício, podem nos dar material para as reflexões
futuras acerca do tema.
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