Quais
são as implicações da mulher como chefe
de família para o próprio conceito de família?
Professora
Doutora Ana Cláudia Duarte Rocha Marques
Professora
do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da Universidade de São
Paulo (FFLCH-USP)
“Lévi-Strauss
há muito observou o caráter quase universal
da família por oposição à
variedade das formas que ela pode assumir. Vale a pena
lembrar como o modelo de família conjugal é
apenas um dentre muitos outros, que por sinal ocupa algum
lugar em meio a um contínuo entre formas mais restritas
e mais estendidas de unidades familiares. |
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As diferentes formas de família podem ser contemporâneas
ou se suceder no tempo, sem que se possa classificá-las
sob critérios evolucionários. Mesmo porque,
os indícios apontam antes uma diversidade de modelos
se desenvolvendo e convivendo em razão mesmo da complexificação
dos nexos sociais, como classe, origem étnica e outras
muitas formas mais segmentares de pertencimento que a vida
nos grandes conglomerados urbanos faculta.
Mesmo tomados sob análise individual os modelos de
família podem mostrar-se mais complexos do que sua
aparente redução poderia sugerir. O fato de
mulheres assumirem a chefia dos núcleos familiares,
com o alijamento ou enfraquecimento das figuras masculinas,
nas camadas de baixa renda, não simplifica nem deve
ser compreendido como mera amputação de um modelo
anterior, conjugal, que lhe tenha dado origem. Certos estudos
sugerem mesmo que um núcleo familiar desprovido do
cônjuge masculino corresponde a um momento de uma organização
familiar capaz de alternar períodos de presença
e ausência dessa figura, não necessariamente
representada pelo mesmo indivíduo.
Além disso, a redução desse núcleo
fundamental tende a fortalecer relações com
outros parentes da mulher - para não mencionar todo
um universo de sociabilidade não restrito aos laços
de parentesco. Se os sistemas de parentesco sempre abrangem
laços de afinidade e de descendência, as organizações
familiares tendem a privilegiar uns em detrimento de outros.
No caso em discussão, a ênfase variaria ao longo
do ciclo do desenvolvimento doméstico.
A crescente importância desse arranjo familiar matricêntrico
é sem dúvida um assunto que merece atenção
e potencialmente promoverá revisões conceituais
relevantes do ponto de vista das relações de
gênero ou das ênfases sobre outras formas de socialidade,
por exemplo. Mas antes que questionar o conceito de família,
sob a forma como a antropologia o tem formulado, essa variedade
de arranjo parece confirmar sua fecunda plasticidade.”
Psicanalista
Nelci Andregheto
Psicóloga e Psicanalista especializada em Psicanálise
da Criança e Psicopatologia. Faz parte da equipe do
Centro de Atenção Psicossocial da Infancia e
da Adolescência (CAPSi) de Carapicuíba-SP
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“O
conceito de família na visão psicanalitica
está ligado a processo identificatório.
Há necessidade que a criança seja reconhecida
e se reconheça dentro de uma determinada herança
familiar. O fato de uma mulher ser chefe de família
não tem uma relação de causa e efeito
para causar qualquer dano na formação de
um indivíduo. É importante pensar que o
fundamental é o reconhecimento e a transparência
nas relações sendo um forte favorecedor
da saúde da família. O que quero dizer é
que se um membro cuidador (seja pai ou mãe) se
sinta conflitante nas suas ações, isso sim
é algo que interfere nas relações.
Há a possibilidade de uma mãe fazer as duas
funções, já que ela pode ter um pai
internalizado? Isso por si só pode instrumentalizá-la
para tal. Tudo isso não quer dizer que o pai real
não seja importante. Muito pelo contrário.
O ideal é que uma família se constitua com
pessoas atuantes e fazendo suas funções
de forma harmônica, inclusive às vezes transitando
pelas duas funções. Veja, as pessoas necessitam
de pessoas reais e ninguém nasce de uma pessoas
só. Agora, já vi casos onde homens exercem
a maternagem suprindo deficiências de maternagem
da figura feminina presente na família e filhos
sem grandes problemas por isso.” |
Professora Doutora Sylvia Leser de Mello
Professora do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho
do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo
“Há
muitos problemas conceituais envolvidos na formulação
da pergunta. A começar pelo de chefe de família.
Se você observar as estatísticas recentes ( IBGE,
por exemplo) mostram a expansão das famílias
matrifocais. Esse fato tem a ver com as condições
de vida das camadas mais pobres da população,
mas também reflete uma crescente autonomia das mulheres
em relação ao desejo ou não de constituir
uma "família" que, no seu sentido tradicional,
significa a submissão feminina e das crianças
ao homem ou "chefe".
Há, portanto, uma transformação profunda
nas relações entre homens e mulheres e entre
adultos e crianças.
Não é de hoje que se vem anunciando a falência
do conceito tradicional de família para explicar ou
dar conta da realidade de arranjos familiares diferentes,
e insistir em usa-lo como parâmetro explicativo implicaria
na desqualificação de milhões de pessoas
que vivem, na prática, outras experiências. Podemos
mudar o conceito, torna-lo mais abrangente e flexível
para torna-lo próximo das condições em
que as pessoas experimentam a "família".
As ciências que se ocupam da família como uma
instituição têm uma tarefa urgente a realizar,
qual seja a de estudar esses novos arranjos, e construir modelos
que poderíamos chamar "modelos para olhar",
que desmistifiquem e desnaturalizem as relações
familiares tradicionais. Não as condenem como retrógradas
ou conservadoras e também não condenem novos
arranjos como desorganização familiar.
Quanto à mulher, que assume cada vez mais os encargos
( e os prazeres) de construir uma família, acho que
é preciso esperar algum tempo. A psicanálise
nos assegura que a figura masculina, assim como a feminina,
é fundamental para a constituição saudável
dos sujeitos. Não creio que a psicanálise seja
a-histórica pois os homens não o são.
O que creio é que novos homens e mulheres nascem no
bojo da transformação social ( e a produzem,
por sua vez). Por que não mudaria a família?”
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