Uma nova visão sobre a segregação urbana O estudo da segregação urbana no Brasil nas últimas décadas tem dado ênfase ao entendimento de suas causas, através de teorias abrangentes que buscam explicar os macroprocessos que geram distribuições espaciais específicas dos grupos sociais no interior da cidade. Esse tipo de abordagem foi (e ainda é, em certa medida) fortemente tributário dos estudos urbanos desenvolvidos nas décadas de 1960 e 1970, influenciados fortemente pela Sociologia Urbana Francesa e pelos debates em torno da teoria da marginalidade que eram desenvolvidos na América Latina. Nesse contexto, a cidade era encarada como um espelho de processos econômicos mais gerais: as desigualdades sociais geradas pelo modo de produção estariam refletidas nas desigualdades espaciais. Tratava-se de entender como as necessidades de reprodução de um tipo de capitalismo periférico e dependente geravam conseqüências sobre o espaço urbano. Entre essas conseqüências estava a configuração de metrópoles marcadas pela distinção entre um núcleo urbano fortemente infra-estruturado, com amplo acesso aos benefícios gerados pelo Estado, e uma periferia caracterizada pela completa ausência do Estado, pela precariedade das condições de vida, pela falta de acesso a serviços básicos, pela ausência de infra-estrutura, pelas soluções habitacionais precárias - ainda que muitas vezes “solidárias”, como o caso dos mutirões para autoconstrução de moradias. Nessas áreas mais periféricas das metrópoles concentravam-se as classes trabalhadoras, segregadas do restante da cidade, obrigadas a viver em condições bastante precárias, até mesmo “espoliativas”. Além da caracterização dessas áreas segregadas, no centro da questão urbana estava o entendimento das causas dessa configuração espacial, entre as quais destacavam-se o mercado de trabalho, o mercado de terras e o próprio Estado. Essa caracterização das áreas periféricas como locais marcados homogeneamente por faltas, ausências e precariedades, já foi até certo ponto superada, com a consideração dos conteúdos concretos das mesmas e a verificação de inúmeras melhorias que lá se processaram nas últimas décadas, devido especialmente ao papel dos movimentos sociais e a alterações nos investimentos públicos e na atuação estatal de um modo geral. Embora essa abordagem tenha sido importante para fornecer uma compreensão geral dos processos envolvidos na construção de espaços segregados, ela descuidou da compreensão das conseqüências da segregação residencial e dos efeitos da concentração espacial de certos grupos sociais, tanto para aqueles que residem nessas comunidades quanto para as políticas públicas. Atualmente está em processo um certo deslocamento do olhar em direção às características concretas dessas áreas segregadas, que permite verificar que as áreas denominadas genericamente de “periferias” possuem conteúdos sociais bastante diversos. Esse novo foco permite perceber a complexidade e a heterogeneidade da distribuição espacial dos grupos sociais, inclusive daqueles mais pobres. Percebe-se que riscos sociais como desemprego, gravidez na adolescência, baixo desempenho escolar e outros não estão todos acumulados nas mesmas áreas, apresentando uma distribuição espacial bastante complexa; percebe-se que é necessário olhar para essas áreas com novas lentes. Ao mesmo tempo, verifica-se que a vida nessas áreas segregadas pode gerar efeitos de isolamento em relação a redes sociais, gerando barreiras à mobilidade social ascendente e contribuindo, no limite, para estimular mecanismos de reprodução da pobreza. Esses novos olhares necessariamente implicam associação entre metodologias quantitativas, que permitam identificar e dimensionar essas áreas segregadas, e análises qualitativas, estudos de caso que permitam analisar as oportunidades existentes nessas áreas, as redes de solidariedade e sociabilidade, as estratégias de sobrevivência. Essa associação é particularmente relevante se levarmos em consideração que a segregação residencial não é um fenômeno negativo em si: a aglomeração espacial de certos grupos sociais – sejam eles grupos étnicos, grupos sócioeconomicamente desfavorecidos ou outros – pode gerar efeitos de fortalecimento de laços de identidade, pode estimular a organização da comunidade no sentido de maior mobilização e poder de demanda frente a interlocutores como o Estado. Contudo, a segregação pode gerar também efeitos de isolamento em relação a oportunidades de inserção e mecanismos de reprodução de pobreza. Essa distinção entre as diversas conseqüências da segregação residencial só pode ser construída de forma clara – sem cair no ideal comunitarista ou no retorno à cultura da pobreza – com esse cruzamento de olhares. * Pesquisadora do Centro de Estudos da Metrópole |
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