Número Cinco - abril/maio/junho de 2005
Artigo Assinado

O Estatuto da Imagem e da Voz no Documentário Contemporâneo
por Ismail Xavier*

Quem acompanha a produção atual de documentários deve ter notado que a entrevista se tornou um dispositivo praticamente onipresente, apresentado como um momento privilegiado do filme, no qual as pessoas apresentam seu ponto de vista sobre o tema em questão. Ao mesmo tempo, a grande maioria desses filmes é desprovida de narração, deixando livre ao espectador a interpretação das imagens e dos diferentes pontos de vista apresentados. Essa proposta, por outro lado, contrasta diretamente com muito daquilo que se vê nos documentários mais tradicionais, veiculados na televisão a cabo, e até mesmo nos telejornais, onde existe sempre uma voz que representa uma autoridade dirigindo o olhar do espectador na direção desejada e fornecendo uma explicação e discurso, induzindo a uma leitura específica das imagens.

A origem desse formato convencional, e que hoje a maioria dos cineastas independentes procura evitar, remonta ao cinema mudo, quando os letreiros eram usados para explicar algumas imagens. Esta combinação de texto e imagens foi a tônica dos documentários dos anos 20, e deixava transparecer a idéia de que as imagens eram capazes de focar um espaço e um momento particular, com ações e interações humanas as mais variadas, mas que a capacidade de generalização e de interpretação das imagens ficava por conta do texto. Posteriormente, com o surgimento do cinema sonoro, a partir de 1928, esse discurso foi transferido dos letreiros para a voz, não por acaso chamada em inglês de voice over , já que a preposição over, em inglês, indica que a voz ( voice ) está acima da imagem e vai cumprir esse papel explicativo. Esse formato, no qual a autoridade foi transferida a alguém que o cineasta colocava como o sujeito falante, predominou no período mais clássico, nas décadas de 40 e 50.

“O cineasta deve trabalhar a favor da abundância de elementos que a imagem fornece à percepção.”

A necessidade de apresentar um discurso explicativo surge do fato de que a imagem se abre para muitos sentidos, permitindo uma experiência complexa e passível de múltiplas interpretações. Essa abertura para muitas direções possíveis é bastante discutida na semiótica e se toma hoje como um valor da obra de arte (quanto mais aberta a diferentes sentidos, quanto mais polissêmica, melhor). No entanto, quando se trata de afirmar uma tese, essa característica é muitas vezes vista como um problema, como algo que pode desviar o espectador da interpretação tida como correta. O recurso usado nos filmes convencionais é a voz over como guia de leitura; a imagem, no limite, torna-se mera ilustração, como num livro em que o autor usa fotos para corroborar a argumentação que está sendo desenvolvida no texto.

Esse modelo mais tradicional só foi seriamente contestado a partir dos anos 60, com o advento do som direto, que permite fazer a captação do som num gravador à parte, em sincronia com a câmera (que é “blimpada”, não faz barulho). Surgiu assim a possibilidade de dar a voz a pessoas as mais variadas, tirando o cineasta da posição de mero observador e fazendo dele um elemento que interage e dialoga com os sujeitos e com a comunidade sendo abordada.O maior ícone desse período foi o cineasta e antropólogo Jean Rouch, um dos primeiros a usar o som direto. Rouch foi também um dos primeiros a sair do formato convencional e explorar novas formas de uso da imagem, utilizando inclusive artifícios ficcionais em seus documentários. Não foi por acaso que tais transformações no cinema tenham sido praticadas por um antropólogo que tinha como uma de suas preocupações um tipo de registro etnográfico em que o pesquisador interage com a comunidade, sabe que entremear-se nos rituais é participar de um teatro de que ele não pode se isentar quando está portando o aparato do cinema e tornando clara a sua presença. A principal virtude etnográfica da imagem é justamente a de ser um registro que, ao contrário de uma anotação de campo escrita, apresenta uma abundância de elementos, podendo dar conta simultaneamente do registro da entrevista, mas também daquilo que está acontecendo no espaço ao redor. Quando vemos uma entrevista ou depoimento na tela não é só a fala que está presente, mas o grão da voz, o gesto, a fisionomia, e toda uma série de outras coisas que podem estar ocorrendo no espaço em volta. Explorando estas possibilidades, muitos cineastas modernos preferem enxergar essa riqueza (polissemia) como uma qualidade a ser valorizada e não como um problema a ser domesticado. Na concepção contemporânea do cinema documentário se acredita que a experiência é tanto mais rica e mais geradora de experiência quanto menos a organização do filme fique atrelada a uma tese que deixaria espaço muito restrito às resoluções de momento e ao dinamismo do próprio processo de realização cuja virtude maior é esta possibilidade do “acontecimento”, o dado revelador que irrompe na experiência enquanto se vive (e o cinema registra, dando conta do efêmero, do que não se repete). O cineasta, ao trabalhar a favor da abundância de elementos que a imagem fornece à percepção não deve, no entanto, se deixar levar pela dispersão, a perda de foco, risco que pode ser minimizado com um projeto bem estruturado em sua moldura geral e objetivos (planejamento e concepção clara do que se quer não impedem a abertura do olhar e da escuta na hora da filmagem).

O cinema brasileiro recente é, em geral, um cinema feito pelo método da interação, nos quais se dá o maior espaço possível aos registros que são obtidos no diálogo entre o cineasta e os sujeitos que estão envolvidos na experiência em pauta, sendo que a entrevista vem em primeiro plano. A presença da câmera gera o que podemos chamar de um pequeno teatro. Diante dela, o comportamento das pessoas muda, já que ela coloca a pessoa no plano público (filmar é tornar público, produzir documento). Por isso, cada pessoa entrevistada é conceitualmente vista como um personagem (no sentido etimológico, pessoa pública). E a escolha dos personagens é talvez o momento mais crucial do filme. Há um trabalho prévio de pesquisa bastante longo, que seleciona primeiro um grupo potencial, e só depois de muita discussão é feita a escolha final de quem efetivamente será entrevistado e fará parte do filme. Além disso, geralmente o número de entrevistados é muito maior do que o número de pessoas que efetivamente permanece no filme. A montagem é a instância maior de poder do cineasta, responsável último pelo resultado do processo.

*Ismail Xavier é coordenador da Área de Difusão do CEM e professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA – USP)

 

 
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