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DiverCIDADE 16
janeiro - abril
de 2008

CONJUNTOS HABITACIONAIS

MATÉRIAS

Conjunto habitacional, uma utopia que virou ruína

Na habitação, pneu é trocado com o carro andando
Equipe reconstrói trajetória de projetos brasileiros

Moradia nova para um novo homem

Como o mundo constrói conjuntos habitacionais?

Cidade Tiradentes é tema de pesquisa e filme documentário

Conjuntos habitacionais na grande tela

REPORTAGEM
Em Zaki Narchi, conjunto habitacional mantém moradores próximos ao centro

ENTREVISTA

Moro em Tiradentes dá continuidade a diálogo entre pesquisa e documentário

PERFIL

Marta Arretche fala sobre avaliação do sistema habitacional realizada pelo CEM

ARTIGO ASSINADO

Distâncias geográficas e acercamentos humano, por Tiaraju D’Andrea, pesquisador do CEM

RESENHAS

Economia dos pontos de vista: Pierre Bourdieu e os Conjuntos Habitacionais

NOTÍCIAS
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Matéria

Conjunto habitacional, uma utopia que virou ruína

CDHU
Saiba como uma idéia de inspiração socialista deu origem a depósitos de gente empilhada, mas ainda é vista como solução para certo tipo de cidade





Gilberto Stam, Mariana Desidério, Rafael Duarte Oliveira Venancio e Rogerio Schlegel

O problema dos conjuntos habitacionais inabitáveis espalhados por grandes cidades brasileiras não é serem conjuntos habitacionais, mas serem inabitáveis. Trocando em miúdos: esse modelo de moradia popular verticalizada, que se desenvolveu ao longo do século passado, pode ser considerado uma solução arquitetônica e urbanística viável para a população pobre ainda hoje. A questão é observar se o conjunto habitacional é utilizado no contexto urbano certo, se respeita os requisitos básicos desse tipo de projeto e se tem a qualidade indispensável para qualquer moradia.

No passado, o conjunto habitacional já teve ares de sonho – a moradia do trabalhador integrado na urbe. Depois, virou pesadelo – não por acaso, a obra de Pierre Bourdieu sobre o tema leva o título de A Miséria do Mundo. Atualmente ainda é possível resgatar partes dessa utopia que virou ruína.

A discussão se torna mais oportuna a partir do lançamento de “Moro na Tiradentes”, quinto documentário produzido pelo setor de Audiovisual do CEM (Centro de Estudos da Metrópole) a partir de estudos desenvolvidos por pesquisadores da instituição. O filme é dirigido por Henri Gervaiseau e Cláudia Mesquita e estreou no festival de documentários É Tudo Verdade no final de março.

Na Cidade Tiradentes, bairro no extremo leste da cidade de São Paulo, centenas de milhares de pessoas moram em conjuntos habitacionais construídos lado a lado. O que era para ser uma solução acabou trazendo novos problemas. “Ali se verificam várias distorções em relação às idéias originais que inspiraram os conjuntos habitacionais. Mas talvez a principal seja não terem levado o próprio nome a sério: Cidade Tiradentes poderia ser uma cidade de fato”, diagnostica Nabil Bonduki, professor da FAU-USP (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo) e especialista em moradia social.

Quando os conjuntos habitacionais começaram a ser imaginados, no início do século XX, representavam uma inovação na maneira de encarar a moradia. Tratava-se de começar a pensar a cidade de maneira mais democrática. Antes, a arquitetura e o urbanismo só se ocupavam das áreas nobres da cidade. Os locais onde os trabalhadores moravam se desenvolviam sem planejamento ou supervisão, a exemplo do que se verificou na França e na Grã-Bretanha do século XIX. “É o movimento moderno da arquitetura, nas primeiras décadas do século XX, que sustenta que a cidade inteira deveria ser projetada”, explica Nabil Bonduki.

As diretrizes dessas construções foram consolidadas nos Ciams (Congressos Internacionais de Arquitetos Modernos), no final da década de 1920. Para Le Corbusier, Anatole Kopp e outros arquitetos da primeira metade do século XX, o moderno não era um estilo, mas uma causa. Havia a intenção de integrar também espacialmente o novo homem que emergia com a industrialização, o trabalhador que com sua atuação construía partidos e governos social-democratas na Europa.

O repertório básico consistia em deixar de lado a casinha com quintal para abrigar uma família e priorizar a racionalização dos espaços, com prédios multifamiliares usando pilotis – colunas que deixavam livre ou quase livre o andar térreo – e cercados de equipamentos comunitários.

O conjunto habitacional era uma concepção nova, influenciada inclusive por idéias socialistas. Pensava no uso coletivo do terreno, descolando a construção de uma unidade habitacional da posse de um pedaço de terra. Do ponto de vista urbanístico, rompia a lógica dominante, de quadras separadas por ruas. A proposta era de grandes áreas internas sem circulação de automóveis, nas quais haveria área de lazer e equipamentos urbanos como postos de saúde e escolas. “Era para gerar um espírito de coletividade, baseado na convivência intensa. Num conjunto habitacional, todas as atividades urbanas estariam concentradas, com exceção do trabalho”, conta Bonduki.

Para as cidades em crescimento acelerado, o conjunto habitacional significava organização. Para as grandes massas de trabalhadores que deixavam o campo e vinham para as cidades, movidos pela industrialização, representava uma alternativa barata de moradia. Por trás dos grandes conjuntos, há a idéia de produção em massa utilizada na linha de produção industrial: os arquitetos modernos consideravam que a construção de unidades habitacionais em grande número baratearia a moradia, gerando ganhos de escala da mesma forma que a produção em série fez com os bens de consumo.

No Brasil, Bonduki destaca a qualidade dos conjuntos habitacionais produzidos pelos chamados IAPs (Institutos de Aposentadoria e Pensão), no período do Estado Novo e dos governos populistas anteriores ao regime militar de 1964. Na avaliação dele, esses projetos trouxeram inovações tanto em termos de moradia para pessoas pobres, como para a própria trajetória da arquitetura brasileira. No momento, Nabil e sua equipe finalizam um livro sobre o tema.

Acontece que essas idéias originais foram se perdendo ao longo do tempo, em sua aplicação pelo mundo afora. A proposta de produção em grande número não significava que todas as unidades devessem ser iguais, mas foi esse o modelo largamente adotado. Os equipamentos coletivos, como escolas e postos de saúde, foram deixados de lado ou implementados em número insuficiente para a demanda.

A lógica de uso do espaço também foi deixada de lado, isto é, lugares como Cidade Tiradentes não têm uma hierarquização espacial, como áreas pensadas para serem mais centrais na circulação das pessoas. A falta de identidade do espaço fica clara na lembrança de uma moradora que no filme “Moro na Tiradentes” relembra como não conseguiu localizar sua casa ao voltar do serviço na primeira semana no bairro.

Os projetos do BNH (Banco Nacional de Habitação), que foi a forma dominante de financiamento de moradias de baixa renda durante o regime militar, deixavam de lado a concepção abrangente dos idealizadores dos conjuntos habitacionais. “O resultado foi a introdução, no repertório da arquitetura da habitação no Brasil, de um racionalismo formal, desprovido de conteúdo, consubstanciado em projetos e obras de péssima qualidade, que desgastou várias das propostas de habitação social defendidas pelo movimento moderno”, relata Nabil Bonduki em sua tese de doutorado Origens da Habitação Social no Brasil.

A partir dos anos da ditadura, conjunto habitacional passou a ser sinônimo de gente empilhada – com freqüência, bem longe do centro consolidado das cidades. Para o pesquisador, Cidade Tiradentes é exemplo da ênfase equivocada do Sistema Financeiro de Habitação, que concebia moradia não como desenvolvimento urbano, mas como mera produção de unidades habitacionais.

Muitos outros conjuntos habitacionais construídos nas últimas décadas têm relação oposta à esperada com a cidade: em lugar de representarem a integração de novas moradias e espaços, são construídos de forma que facilita a segregação de quem mora ali. “Em muito casos não se pensou na localização dos empregos, na identidade dos espaços, em um transporte de massa eficiente”, relembra Bonduki.

Por sinal, as limitações de financiamento são responsáveis em grande medida pela deterioração da qualidade dos projetos de conjuntos habitacionais, na avaliação de Bonduki. Para viabilizar um custo compatível com a capacidade de financiamento de imóveis para baixa renda, que não eram priorizados nas décadas passadas, os custos foram reduzidos a ponto de comprometer a qualidade mínima dessa forma de habitação.

Ainda uma solução

A cidade de São Paulo já foi exemplo de área para a qual os conjuntos habitacionais eram recomendáveis. Em 1940, tinha perto de 1,3 milhão de habitantes e seu crescimento acelerado levou o número de habitantes a mais de 10 milhões. Hoje, no entanto, faz mais sentido usar os espaços vazios que sobraram no interior da mancha urbana do que construir um novo pedaço de cidade mais adiante, por meio de conjuntos habitacionais. É uma forma de usar a infra-estrutura de serviços já instalada, como rede de luz e esgoto, de deixar o morador mais próximo dos empregos, diminuindo a necessidade de deslocamentos com transporte de massa, e de dar nova vida a áreas degradadas.

Isso não quer dizer que os conjuntos habitacionais não possam ser cogitados como solução para determinados tipos de cidade, desde que bem utilizados. O governo federal atualmente prepara um Plano Nacional de Habitação, que vai fixar as diretrizes para a área em todo o país, sem no entanto descer a detalhes de projeto para cada cidade ou região. Segundo Nabil Bonduki, que participa da discussão, a equipe trabalha com 11 tipos diferentes de cidades e os conjuntos habitacionais poderão ser recomendados para áreas ainda em crescimento, em que são necessárias quantidades massivas de unidades para combater o déficit de moradias.

Num contexto de elevada carência de moradias como o brasileiro, não se devem desprezar os diferentes tipos de solução disponíveis. Marta Arretche, coordenadora de pesquisa do CEM, defende a descentralização como princípio que devem nortear a atuação no setor de habitação. A pesquisadora coordenou projeto que, a pedido do Ministério das Cidades, avaliou a capacitação de Estados e municípios nessa área. Seu estudo constatou que as competências municipais são, de forma geral, reduzidas, mas ela acredita que a solução da questão de moradias não pode prescindir dessa esfera de governo. Para Marta Arretche, o combate ao déficit habitacional exige uma política nacional de incentivo à capacitação municipal “com transferências federais e estaduais que permitam a descentralização que a execução de serviços habitacionais se torne uma realidade”.

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