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DiverCIDADE 16
janeiro - abril
de 2008

CONJUNTOS HABITACIONAIS

MATÉRIAS

Conjunto habitacional, uma utopia que virou ruína

Na habitação, pneu é trocado com o carro andando
Equipe reconstrói trajetória de projetos brasileiros

Moradia nova para um novo homem

Como o mundo constrói conjuntos habitacionais?

Cidade Tiradentes é tema de pesquisa e filme documentário

Conjuntos habitacionais na grande tela

REPORTAGEM
Em Zaki Narchi, conjunto habitacional mantém moradores próximos ao centro

ENTREVISTA

Moro em Tiradentes dá continuidade a diálogo entre pesquisa e documentário

PERFIL

Marta Arretche fala sobre avaliação do sistema habitacional realizada pelo CEM

ARTIGO ASSINADO

Distâncias geográficas e acercamentos humano, por Tiaraju D’Andrea, pesquisador do CEM

RESENHAS

Economia dos pontos de vista: Pierre Bourdieu e os Conjuntos Habitacionais

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Matéria

Cidade Tiradentes é tema de pesquisa e filme documentário

Em bairro marcado pela segregação, filme foca trajetória de moradores dos conjuntos habitacionais e dá continuidade a diálogo entre cinema documentário e ciências sociais

por Gilberto Stam

Em uma cidade como São Paulo, onde a pobreza é geralmente associada às favelas, o bairro de Cidade Tiradentes é ao mesmo tempo uma exceção e um enigma. Uma exceção porque é um único bairro totalmente planejado pelo governo, onde foi construído gigantesco conjunto habitacional. Um enigma porque é um dos locais menos conhecidos de São Paulo. A informação mais difundida, a suposta violência do lugar, não é verdadeira, já que Cidade Tiradentes não está entre os bairros mais violentos da periferia.
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Planejado para receber a população pobre de diversos locais da cidade de São Paulo, atraiu milhares de pessoas que, atrás do sonho da casa própria, não se deixaram intimidar pela distância. Essa distância, no entanto, trás diversas desvantagens para a população, como os problemas de transporte, baixa oferta de emprego e poucas iniciativas sociais, o que torna o local quase que exclusivamente do poder público.

O processo de formação do bairro, que acabou agregando pessoas com dificuldades econômicas e que foram para lá por falta de opção, resultou num estigma, refletido principalmente na fama de local violento. Esse estigma acabou dificultando a formação de laços sociais, uma estratégia importante para contornar a pobreza.

Pare entender melhor os efeitos da distância no bairro, o pesquisador Tiaraju Pablo D’Andrea, do Centro de Estudos da Metrópole, realizou a pesquisa Redes Sociais em Cidades Tiradentes. A pesquisa serviu como ponto de partida para uma série de três documentários sobre a questão habitacional no bairro, dirigidos por Henri Gervaiseau. O primeiro deles, Moro na Tiradentes, co-dirigido por Claudia Mesquita, com foco nos moradores dos conjuntos habitacionais, já está pronto e deverá ser veiculado na TV e distribuído para escolas e instituições públicas em DVD. Além de dialogar com a pesquisa, o filme revela um pouco do movimento que existe dentro do bairro, num esforço contínuo para transformar o local num lugar melhor para se viver.


A temática habitacional

A questão da moradia foi escolhida como o foco da série de três documentários, apesar de a pesquisa Redes Sociais em Cidade Tiradentes tratar também de outras questões, como cultura, lazer e segurança. “Essa opção se deu devido à sua relevância não só na vida das pessoas e na história do bairro, mas pelo que ela implica em termos das relações com o poder público e com a sociedade em geral”, diz Henri Gervaiseau.
Para uma grande parte dos novos moradores, mudar para o bairro não significou, ao cabo, chegar ao sonho da casa própria, mas sim uma imersão numa rede de irregularidades, prestações inflacionadas ou sem prazo para terminar, ocupações, contratos de gaveta ou mesmo pagamento de aluguel para ocupantes.
Uma das conseqüências desse deslocamento é a quebra das redes de sociabilidade. "No bojo do deslocamento constitui-se uma negação do novo espaço, onde mesclam resignação e raiva", diz Tiarajú. "Dessa forma, os novos moradores têm dificuldades de assumir o local como sendo seu e trabalhar em sua melhora e habitabilidade". As dificuldades de locomoção para o trabalho e para os locais que as pessoas estão acostumadas a frequentar também fazem com que as pessoas, muitas vezes, percam o interesse pelo local em que vivem.
Cidade Tiradentes apresenta, entretanto, pontos positivos, como um dos maiores números de escolas publicas do município. No entanto, o fato de o local ser tão afastado do centro, onde não há emprego, transporte, equipamentos e serviços públicos suficientes para uma população que não para de crescer, acaba minimizando essas vantagens. “Como se o equívoco não tivesse sido grande o suficiente, o poder público resolve insistir no erro. O estado continua construindo dezenas de edifícios no local, enquanto existem no centro de São Paulo outras centenas de edifícios vazios”, diz Tiaraju.
Tiarajú teceu suas observações em pesquisa de campo realizada durante um ano. A pesquisa se situa dentro da linha de pesquisa sobre Sociabilidade Urbana, coordenada por Ronaldo de Almeida, cujo objetivo é compreender as diferentes formas de pobreza em diferentes locais da cidade, aliando a etnografia com as metodologias quantitativas em Ciências Sociais, para chegar a uma melhor compreensão da desigualdade nas metrópoles brasileiras. Cidade Tiradentes serviu como contraponto à primeira etnografia, realizada em Paraisópolis, uma favela com entorno rico, do qual se beneficia pela oferta de emprego e iniciativas sociais ou de caridade, com fortes vínculos de sociabilidade, e uma população que geralmente segue uma trajetória ascencional, com melhorias na qualidade de vida ao longo dos últimos anos.


Cinema documentário e ciências sociais em diálogo

Moro em Tiradentes, abre uma janela para dentro de uma realidade afastada e pouco conhecida, e mostra as histórias, vidas e conflitos que se passam dentro desses blocos aparentemente iguais. Ao longo dos depoimentos, fica clara a “desarticulação” das redes de sociabilidade, um dos temas centrais da pesquisa sobre o bairro. Para Ivone, uma das entrevistadas, a mudança para Cidade Tiradentes foi uma surpresa desagradável. Sem avisá-la, o marido usou todo o dinheiro que haviam poupado para comprar uma casa com dois cômodos minúsculos.
Outro aspecto que aparece é a rede de irregularidades que envolve os conjuntos. Helena ocupou um apartamento junto com os filhos durante 3 meses, até ser despejada pela polícia. Por sorte, uma conhecida pediu que ela cuidasse de um aparamento ocupado, enquanto negociava a regularização com a CDHU. Instalou-se no apartamento, e pagava o aluguel para essa senhora, sabendo que a qualquer momento ela pediria o apartamento de volta.
Os relatos revela os dissabores que envolveram a tão esperada realização do sonho da casa própria, resultando, freqüentemente, numa sensação de perda de confiança nas instituições. Viver em Cidade Tiradentes, muita vezes, parece representar o mesmo que estar encurralado, jogado num canto da cidade, de difícil acesso, sem disponibilidade de emprego, sem esperança de futuro. Alguns moradores contam que, quando procuram emprego, escondem o endereço de residência para não ser rejeitado na hora da contratação.
Mas o filme também aponta em outras direções. Periodicamente, surgem cenas do cotidiano, um armazém, um barzinho, o movimento na rua, os ônibus passando, uma academia de artes marciais. Imagens mostram o interior das casas, um santinho, um caneco da Vai-Vai. Esses pequenos detalhes parecem deixar entrever um movimento diferente, enfatizado pelo próprio título, de busca de auto-afirmação e criação de melhores condições de vida. Muitos dos relatos contam também sobre conquistas ou melhorias no bairro, como ampliação de casas, aumento no comércio ou diminuição na violência.
 “A gente tem que transformar isso aqui”, diz Nando, que trabalha fora do bairro, mas faz trabalho comunitário. O sonho de Ivone era morar na Vila Maria, mas diz que Cidade Tiradentes também pode ser. “Eu gosto dos dois lugares. Eu acostumei nos dois lugares. Por causa deles (os filhos) eu acabei acostumando. A situação mandou eu acostumar. Então acabei gostando daqui. Acho que eu nem me vejo fora daqui. Eu vou ficar peixe fora da água fora da Tiradentes”. Camila, filha de Ivone, diz que não sai de lá, mesmo trabalhando longe. “Gosto das pessoas daqui”. Aos poucos, esse bloco aparentemente uniforme de pobreza vai sendo ressignificado por um tecido de vidas que se movimentam buscando melhores condições de vida.

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