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DiverCIDADE 16
janeiro - abril
de 2008

CONJUNTOS HABITACIONAIS

MATÉRIAS

Conjunto habitacional, uma utopia que virou ruína

Na habitação, pneu é trocado com o carro andando
Equipe reconstrói trajetória de projetos brasileiros

Moradia nova para um novo homem

Como o mundo constrói conjuntos habitacionais?

Cidade Tiradentes é tema de pesquisa e filme documentário

Conjuntos habitacionais na grande tela

REPORTAGEM
Em Zaki Narchi, conjunto habitacional mantém moradores próximos ao centro

ENTREVISTA

Moro em Tiradentes dá continuidade a diálogo entre pesquisa e documentário

PERFIL

Marta Arretche fala sobre avaliação do sistema habitacional realizada pelo CEM

ARTIGO ASSINADO

Distâncias geográficas e acercamentos humano, por Tiaraju D’Andrea, pesquisador do CEM

RESENHAS

Economia dos pontos de vista: Pierre Bourdieu e os Conjuntos Habitacionais

NOTÍCIAS
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Resenha

HLM e ZUP: economia dos pontos de vista

Em seu livro A Miséria do Mundo, Pierre Bourdieu compila uma série de entrevistas e reflexões sobre os conjuntos habitacionais e moradias populares franceses. Uma busca pelo confronto das visões de pessoas que são obrigadas a coabitarem nesses lugares.

Rafael Duarte Oliveira Venancio

livro “Para compreender o que se passa em lugares que, como os ‘conjuntos habitacionais’ ou os ‘grandes conjuntos’, e também numerosos estabelecimentos escolares, aproximam pessoas que tudo separa, obrigando-as a coabitarem, seja na ignorância ou na incompreensão mútua, seja no conflito, latente ou declarado, com todos os sofrimentos que disso resultem, não basta dar razão de cada um dos pontos de vista tomados separadamente. É necessário também confrontá-los como eles o são na realidade, não para os relativizar, deixando jogar até o infinito o jogo das imagens cruzadas, mas, ao contrário, para fazer aparecer, pelo simples efeito da justaposição, o que resulta do confronto de visões de mundo diferentes ou antagônicas: isto é, em certos casos, o trágico que nasce do confronto sem concessão nem compromisso possível de pontos de vista incompatíveis, porque igualmente fundados em razão social”.

           
O parágrafo acima, que é a transcrição do primeiro parágrafo do livro  A Miséria do Mundo, dá a tônica da pesquisa de três anos, coordenada por Pierre Bourdieu, que dedicou-se a compreender as condições de produção das formas de miséria social contemporâneas. Para ele, o importante era buscar o entendimento delas não apenas através dos conceitos acadêmicos ou de sensos comuns veiculados pela mídia ou pela separação das vozes que cohabitam na miséria.

Sua pesquisa deveria a junção de todas as vozes, seja do francês pobre ou do imigrante que ainda se sente estrangeiro no país que mora há décadas. O choque, muitas vez conflituoso, dessa vozes não só mostraria a tônica da razão social, mas também do traçado da periferia francesa. O resultado sai no livro citado, que é uma compilação de depoimentos e reflexões publicada em 1993 pela Éditions du Seuil e traduzido para o português em 1997 pela Editora Vozes.
           
A busca do objeto de pesquisa foi feita nos conjuntos habitacionais, nas escolas, no subproletariado, no universo de funcionários, no campesinato, com artesãos nas famílias. Todos eles são “espaços onde se desenrolam conflitos específicos, onde se afirma um sofrimento cuja verdade é dita, aqui, pelos que as vivem”.
           
Um dos lugares/espaços privilegiados são os conjuntos habitacionais e as moradias populares, representadas pelas HLM e pelas ZUP. HLM é a sigla de “habitations à loyer moderé”, ou seja, são conjuntos habitacionais de aluguel módico. Já ZUP sigfinica “zone à urbanizer en priorité”, ou seja, zona de urbanização prioritária.
           
As HLM remotam ao século XIX com as chamadas HBM, “habitations à bon marché” (conjuntos habitacionais de bom preço), criadas através da Lei Siegfried de 30 de novembro de 1894. Essa idéia já existia há mais de 50 anos com o advento das primeiras leis contra moradias insalubres que foram consideradas a principal causa da epidemia de cólera nos anos 1830.
           
A maior expansão das HBM é entre 1920-30, principalmente com a Lei Loucheur que proporcionou a construção de 260 mil unidades. Após a II Guerra Mundial, as HBM saem do Ministério da Saúde e passam para o Ministério de Reconstrução e Urbanismo. Em 1949, finalmente, as HBM mudam o nome para as HLM.
           
Segundo o artigo L 411-1 do Código de Construção e Habitação, as HLM são “habitações coletivas ou individuais, urbanas ou rurais, que respondem a características técnicas e de preço de custo determinados por decisão administrativa e destinada a pessoas e a famílias de poucos recursos”. Em 2005, a França possuia 12 milhões de pessoas morando nas 4 milhões de unidades. Com esse número, as HLM representam 18% do total de moradias.
           
Já as ZUPs foram criadas na França entre 1959 e 1967 para atender a demanda crescente de moradia. Elas foram destinadas à criação de bairros novos com áreas residenciais, comerciais e completa infra-estrutura. Também permitiram a construção dos “Grands ensembles”, conjuntos habitacionais de grande porte.
           
A principal crítica às ZUPs é que, se na época delas foi uma solução para o problema da falta de moradia, atualmente não viraram bairros dinâmicos, vivenciando um constante paradoxo entre alta atenção e esquecimento pelas autoridades.
           
Os entrevistados de Bourdieu moram, em sua maioria, nesses dois tipos de lugares. E todo o trabalho de pesquisa busca “mostrar que os lugares ditos ‘difíceis’ (como hoje o conjunto habitacional ou a escola) são, primeiramente, difíceis de descrever e de pensar  e que é preciso substituir  as imagens simplistas e unilaterais (aquelas que a imprensa sobretudo veicula), por uma representação complexa e múltipla, fundada na expressão das mesmas realidades em discursos diferentes, às vezes inconciliáveis”.
          
Inconciliáveis como a opinião dos Leblond e dos Amezziane que moram na mesma rua dos Junquilhos, na ZUP de “Val Saint Martin”. Os primeiros, um dos poucos franceses que moram no local, reclamam sobre os hábitos dos árabes, origem dos segundos, durante o Ramadã (dormem de dia, começam a viver às 22h e as crianças reclamam de fome) e no dia-a-dia: “Ela [a Familiale, organização de HLM] alojava todas aquelas pessoas juntas, e não era isso que deveria ter sido feito com a Familiale nem com a prefeitura; aquelas pessoas deveriam ser espalhadas um pouco, habituadas um pouco a viver, não estão mais no mato (...) É preciso ensinar essas pessoas a viver em comunidade”.
          
Inconciliáveis como a relação dos árabes Ben Miloud que sofrem o risco de despejo de um HLM por causa da denúncia de uma vizinha francesa: “É a sua maneira de me dizer: a França me pertence, é a França dela; nós não somos dessa França, ela não nos pertence, nós também não pertecemos a ela. Ela está convencida disso. Ela me disse uma vez que era graças a ela que tínhamos um jardim público em frente da casa, fora ela quem pediu ao prefeito e obteve, mas ele está lá há um século. Ela nos ameaça interditar nosso acesso ao jardim, dito de outro modo, ao domínio público”.
           

Inconciliáveis que, conforme nos avisa Pierre Bourdieu, “se as entrevistas foram concebidas e construídas como conjunto auto-suficiente, suscetíveis de serem lidas isoladamente (e numa ordem qualquer), elas foram distribuídas de maneira que as pessoas pertencentes a categorias que têm possibilidades de ser aproximadas, até confrontadas, no espaço físico (como os zeladores de HLM e os habitantes, adultos ou adolescentes, operários, artesãos ou comerciantes, desse gênero de residência) encontram-se também aproximadas na leitura”.
           
A Miséria do Mundo cumpre bem essa tarefa de confrontação. No entanto, como nos lembra a conclusão da obra, “levar à consciência os mecanismos que tornam a vida dolorosa, inviável até, não é neutralizá-los; explicar as contradições não é resolvê-las”. Mas, tal como diz o comentarista sem nome que faz a sinopse comercial do livro, “ao terminar de ler, ter-se-á compreendido que este livro propõe uma outra maneira de fazer política”.
pierre
Pierre Bourdieu


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