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DiverCIDADE 16
janeiro - abril
de 2008

CONJUNTOS HABITACIONAIS

MATÉRIAS

Conjunto habitacional, uma utopia que virou ruína

Na habitação, pneu é trocado com o carro andando
Equipe reconstrói trajetória de projetos brasileiros

Moradia nova para um novo homem

Como o mundo constrói conjuntos habitacionais?

Cidade Tiradentes é tema de pesquisa e filme documentário

Conjuntos habitacionais na grande tela

REPORTAGEM
Em Zaki Narchi, conjunto habitacional mantém moradores próximos ao centro

ENTREVISTA

Moro em Tiradentes dá continuidade a diálogo entre pesquisa e documentário

PERFIL

Marta Arretche fala sobre avaliação do sistema habitacional realizada pelo CEM

ARTIGO ASSINADO

Distâncias geográficas e acercamentos humano, por Tiaraju D’Andrea, pesquisador do CEM

RESENHAS

Economia dos pontos de vista: Pierre Bourdieu e os Conjuntos Habitacionais

NOTÍCIAS
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Artigo Assinado

Distâncias geográficas e acercamentos humanos

Tiarajú D’Andrea
Mestrando em Sociologia Urbana
 Universidade de São Paulo

Para muitos paulistanos, a metrópole se resume ao quadrilátero cercado pelas avenidas que conformam o centro expandido. Essa noção foi reforçada com a implantação do rodízio de veículos no ano de 1997, incentivando os paulistanos a conhecer os limites de seu ir e vir. A preocupação com o trânsito é maior para quem resolveu seu problema de moradia. Para quem não resolveu, uma das soluções é a inscrição em programas públicos de habitação. Eis que nasce a Cohab. Não por acaso, sempre além das fronteiras do centro expandido.

Por uma sobreposição semântica, Cohab pode significar um órgão público, um bairro ou um modo de vida. Temerosos de que a Revolução Cubana se espalhasse pela América Latina, a Aliança para o Progresso incentivou os governos do continente a resolverem seus problemas habitacionais. Incentivado pela verba internacional, em 1965 o governo brasileiro fundou a Cohab, nome genérico de várias companhias públicas que promovem ou que promoveram políticas habitacionais em diversas regiões do país. A Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo é hoje uma autarquia da Prefeitura Municipal de São Paulo, e também nasceu em 1965.

Especificamente na metrópole paulistana, os conjuntos habitacionais chamados de Cohab’s estão principalmente na zona leste, periferia cuja quantidade de moradores com “casa própria” é, historicamente, maior que nas demais. A zona sul da cidade, por exemplo, sempre foi protegida por uma série de leis de zoneamentos que impedem intervenções de grande porte demográfico, de modo a evitar danos ambientais que prejudicassem as áreas de mananciais. Como sabemos, os mananciais foram aos poucos sendo ocupados. Mas o fato é que o interdito exposto é um dos motivos das cohab’s estarem presentes em maior número na zona leste. A diferença entre regiões no que tange à presença desta forma de política pública de habitação é notável: a zona oeste tem apenas 2 cohab’s; a zona norte 14; a zona sul 19, (sendo oito delas na favela Heliópolis); e a zona leste incríveis 39 conjuntos habitacionais, totalizando aproximadamente 700 mil, de seus três milhões e meio de habitantes. Ou seja, na superpovoada zona leste de São Paulo, um a cada cinco moradores vivem num apartamento (ou casa) da Cohab.

Vários motivos entrelaçados fizeram da zona leste a anfitriã principal das Cohab’s. Um deles é a imperiosa necessidade de resolução da questão habitacional na metrópole, questão esta que já vem de longe. Outro inescapável motivo era a presença de terrenos vazios nesta zona da cidade, vazios e baratos, diga-se de passagem. E baratos porque a passagem até eles quase que não existia, para além do trocadilho. Este é o caso do conjunto Teotônio Vilela, em Sapopemba; do José Bonifácio, em Itaquera, e do Conjunto Prestes Maia, em Cidade Tiradentes.

Quando de sua inauguração, em 1975, o Conjunto Habitacional Prestes Maia era uma série de casas de dois cômodos. Sem água, sem luz, no meio da mata atlântica. E a quilômetros do último ponto de mancha urbana da cidade. Logo, uma série de outros conjuntos foram construídos ao redor. Para implantar toda infra-estrutura urbana necessária no local (rede de esgoto, eletricidade, asfaltamento, etc), conectando-a com a já existente na “mancha urbana”, o poder público repassou um inestimável montante de recursos a empreiteiras e construtoras. Num breve cálculo de soma e divisão, a quantia gasta para urbanizar a Cidade Tiradentes fez com que cada um de seus apartamentos de 42 metros quadrados valesse o mesmo que um apartamento na Avenida Paulista.


Lição 1
– construir conjuntos habitacionais é um bom negócio.
Os vazios urbanos existentes entre a cidade urbanizada e as cohab’s se valorizaram muito também com a implantação da referida infra-estrutura urbana. Em Cidade Tiradentes isso é notório, mas o caso da Cohab José Bonifácio, talvez seja mais esclarecedor. Inaugurada em 1980 pelo então presidente Figueiredo, a Cohab José Bonifácio, em Itaquera, localizava-se em um enorme terreno ao lado das famosas plantações de pêssegos cultivadas por imigrantes japoneses desde 1920. Trocando em miúdos, o lugar era um matão. Uma extensão da Mata do Carmo, longe até da extinta estação de trem do bairro, na qual só era possível chegar de ônibus. Comparada com a Cidade Tiradentes, a Cohab José Bonifácio teve um crescimento bem mais rápido, no começo da década de 80. Seus edifícios foram rapidamente povoados e a população pressionou o poder público por serviços, como transporte público, escolas, hospitais e postos de saúde, sendo em parte atendida. O curioso é que só depois da chegada das pessoas e dos serviços é que foram realizadas obras de infra-estrutura viária, e todas elas no já referido vazio urbano que existia entre a Cohab José Bonifácio e o resto do mundo. A lista não é pequena, e se a memória não falha, poderíamos lembrar a estação de metrô Corinthians-Itaquera, inaugurada em 1988; a Avenida Jacu-Pessego, inaugurada em 1995; a linha de trem Itaquera – Guaianazes, de 2000; e a nova Radial Leste, de 2004, todas obras caras e de grande porte, além de uma série de outras obras viárias de menor porte. Como se não bastasse, depois da implantação de infra-estrutura viária que chegou depois dos equipamentos públicos que vieram depois das pessoas que chegaram depois apartamentos, em 2007 foi inaugurado o Shopping Metrô Itaquera. Enclave viário, centralidade da periferia, aos poucos Itaquera se transforma num bairro de classe média, devido ao acréscimo nos preços dos terrenos.


Lição 2
– a localização de um conjunto habitacional é importante, sobretudo se entre ele e o mundo há um vazio. Não um vazio existencial, mas um vazio que permita uma boa valorização fundiária.

Hoje o distrito de Cidade Tiradentes conta com aproximadamente 250 mil habitantes, com aproximadamente 170 mil deles vivendo em aproximadamente 20 conjuntos habitacionais. Não me arrisco a dizer o dado exato, pois o distrito se transformou na maior plantação latinoamericana de prédios (sim, porque no distrito os prédios brotam da noite para o dia). De certo, hoje existe uma melhor oferta de serviços que quinze ou vinte anos atrás. A violência também diminuiu. Ficou a fama. Desses fatos decorre a famosa e verdadeira frase: “a Cidade Tiradentes evoluiu”. Contudo, outros sérios problemas persistem. Entidades do distrito se organizam para entrar com uma denúncia no Ministério Público contra as secretarias municipal e estadual de educação, devido à falta de vagas nas escolas do distrito.
Em José Bonifácio, existem aproximadamente 110 mil moradores, e a situação é aparentemente melhor. Uma rápida observação visual apresenta-nos um bairro consolidado. Existe um número maior de comércio, de transporte público, as escolas e as creches funcionam melhor e a renda é surpreendentemente superior a dos distritos vizinhos. As fachadas estão melhor acabadas, os prédios bem cuidados (alguns têm até guarita de segurança) e as ruas são ocupadas por jovens com roupas de grife e carros novos, dado que almejam o padrão dos moradores de bairros abastados.

Todavia, prédio adentro, a sociabilidade entre os vizinhos não varia tanto de cohab para cohab. Em todas prevalece o aperto dentro dos apartamentos, e há uma linha de  instabilidade entre o público e o privado nas relações entre vizinhos. Como as habitações são próximas e o espaço apertado, as áreas de uso comum “invadem” o lar propriamente dito, seja na algazarra das crianças brincando nas escadas ou no olhar de um transeunte janela adentro. Cabe lembrar ainda que a música provinda de um apartamento é compartilhada por todo o edifício, sobretudo nos finais de semana.


Lição 3
– se você quer um lar tranqüilo, não vá morar numa cohab (se tiver escolha...)
Uma outra restrição imposta pela organização do espaço é a impossibilidade de construir os famosos e eficazes “puxadinhos”, em caso de aumento de família. A falta de espaço para organizar festas e celebrações também é um problema. Contudo, essa impossibilidade física para organizar reuniões não impede a organização cultural e política de seus moradores, notadamente os mais jovens. Em ambas cohab’s são incontáveis os grupos de rap que fazem da cultura seu modo de organização.  Como também as bandas de rock que fervilham nos conjuntos, além do onipresente samba.

A experiência da casa própria num apartamento da Cohab é contraditória, complexa, às vezes revoltante e por outras, motivo de apego. Não direi nestas breves linhas se é boa ou ruim. Cada morador que diga por si mesmo. Todavia, inúmeras outras soluções para o problema da habitação existem. Faltam força ou vontade política para implementá-las, vide a quantidade de apartamentos vazios no centro da cidade. Fica-nos a eterna sensação de que o poder público quando implementa uma política na periferia o faz baseado na lógica do experimentalismo, do laboratório, do incompleto, do inacabado, ou do mal feito, assim como o Expresso Tiradentes e seus viadutos, para além da metáfora.
Para finalizar, longe de ser rincões de resignação, as cohab’s são locais onde coletivamente seus milhares de moradores se organizam para melhorar espaços e sociabilidades reduzidos pela política pública. Por sobre a distância geográfica, o acercamento humano. Por sobre a política pública autoritária, o incontornável desejo de viver melhor.

Obs: o autor deste artigo viveu um ano de sua infância na Cohab José Bonifácio, entre os anos de 1983 e 1984. Depois, para fins de pesquisa acadêmica, passou quinze dias morando no Setor G, em Cidade Tiradentes, no ano de 2005. Atualmente trabalha num mutirão autogerido de casas populares, também em Cidade Tiradentes. Se em algum momento este escrito deslizou do campo da objetividade científica para alguma outra forma de expressão literária, o fenômeno ocorreu pelas incontroláveis razões (e emoções) acima expostas.


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