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DiverCIDADE 19
abril-setembro 2009

SAÚDE - DOSSIÊ SUS

MATÉRIAS

SUS 20 anos: avanços e desafios de um sistema único de saúde

Sistema do Brasil é ma

DiverCIDADE 19
abril-setembro 2009

SAÚDE - DOSSIÊ SUS

MATÉRIAS

SUS 20 anos: avanços e desafios de um sistema único de saúde

Sistema do Brasil é mais próximo do inglês
Os desafios da relação público x privada do SUS

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Cidades Saudáveis: novas formas de promover saúde
A ampliação do conceito de saúde: um outro desafio para o SUS
Conselhos aproximam a população dos administradores

ARTIGO ASSINADO

Poder Judiciário e a Política de Medicamentos, por Fabiola Fanti

ENTREVISTA

‘Atendimento ao negro pelo SUS precisa avançar’

PERFIL

Vera Schattan Coelho: Saúde e democracia junta
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ENTREVISTA

‘Atendimento ao negro pelo SUS precisa avançar’

PERFIL

Vera Schattan Coelho: Saúde e democracia junta
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Artigo Assinado

Poder Judiciário e a Política de Medicamentos

Por Fabiola Fanti, pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap)

           
A Constituição Federal de 1988 (CF/88) intensificou no Brasil um fenômeno já observado em várias das democracias contemporâneas nas últimas décadas: o da utilização dos tribunais como importante local de influência do processo político decisório. As cortes têm sido cada vez mais demandadas a opinar sobre questões envolvendo políticas públicas e, por meio de suas decisões, acabam por ter papel relevante na definição delas. Neste contexto, dentro do amplo espectro de possibilidades do uso do Poder Judiciário como arena política, tem se tornado cada vez mais relevante o impacto das decisões da justiça comum nas políticas sociais, e mais notadamente nas políticas de saúde.

           
Em parte, esse processo foi possível graças a arquitetura institucional a que a CF/88 deu origem. Se por um lado, ela alargou o rol de direitos fundamentais dos cidadãos, tanto no que diz respeito ao acesso ao judiciário como em relação aos direitos sociais 1, por outro lado também ampliou os meios processuais para garanti-los 2. Essa combinação facilitou o acesso do cidadão individualmente ou da sociedade civil aos tribunais por meio de procedimentos comuns, possibilitando o questionamento judicial da efetividade de políticas públicas (ou da falta delas). Assim, as cortes da justiça comum têm se configurado em locais propícios à alteração de políticas sociais por meio de ações baseadas no argumento da garantia de direitos sociais.            

remedios No caso específico das políticas sociais de saúde, pode-se afirmar que na última década houve uma crescente onda de ações judiciais contra a União, estados e municípios (de forma conjunta ou separadamente) pleiteando uma série de serviços de saúde, dentre os quais, o acesso a medicamentos é o mais demandado. Este processo se iniciou em meados da década de 90 com ações que pleiteavam remédios anti-retrovirais para tratamento da AIDS e, com o passar do tempo, generalizaram-se para pedidos de uma gama variada de medicamentos 3.

As ações têm como pedidos medicamentos que constam nas listas padronizadas do Sistema Único de Saúde (SUS), mas cujo fornecimento tem falhado, passando por aqueles que possuem similares na lista do SUS, mas cujo pedido se refere a uma marca comercial específica, até aqueles medicamentos que não estão incluídos na política de medicamento, que em geral são novidades terapêuticas e em alguns casos ainda não foram aprovados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) 4.

           
Analisando-se especificamente os julgamentos dessas ações pelo Tribunal de Justiça de São Paulo 5 (TJ/SP), identificou-se alguns elementos comuns existentes entre eles. Inicialmente, a maioria das ações foram interpostas por cidadãos individualmente, ou pelo Ministério Público em nome de uma pessoa ou pequeno grupo. A quase totalidade das ações foram julgadas procedentes pelos desembargadores, com base principalmente no direito à saúde garantido pela CF/88, assim como na Lei Orgânica da Saúde (Lei 8.080/90, que regula o SUS). Um dos artigos da CF/88 mais utilizados como embasamento jurídico por estas decisões é o 196 da CF/88, que dispõe que “a saúde é direito de todos e dever do Estado, devendo ser garantida mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doenças e outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para a sua promoção, proteção e recuperação”.
           

Foram identificadas quatro principais linhas argumentativas nas decisões analisadas. A primeira delas é a questão da responsabilidade dos gestores do SUS para fornecimento de medicamentos. De maneira sintética, pode-se dizer que os juízes entendem que os três entes federativos (União, estados e municípios) têm obrigação solidária para fornecer os medicamentos pleiteados, independentemente de qual seja o gestor competente para fazê-lo de acordo com a política de assistência farmacêutica do SUS. A segunda linha de argumentação afirma que decisões que determinam o fornecimento dos medicamentos não configuram invasão do Poder Judiciário na esfera de discricionariedade da Administração Pública e não ferem nem a independência do Poder Executivo em tomar suas decisões, nem o princípio da separação de Poderes. A terceira linha de argumentação diz respeito a questões orçamentárias ligadas à compra dos medicamentos demandados: os desembargadores afirmam que problemas com orçamento são menores que o direito à vida, essencialmente ligado ao direito à saúde, e que portanto não devem ser considerados neste tipo de decisão. Adicionalmente, afirmam que a legislação permite que sejam feitos gastos não previstos no orçamento, assim como seja dispensado o processo de licitação para a compra dos medicamentos, se esta se der em caráter de urgência, como no caso das ações aqui citadas.

Finalmente, foram identificadas questões especificamente ligadas ao debate de se o medicamento deve ou não ser concedido. Uma primeira discussão é aquela a respeito de se o remédio pleiteado na ação precisa ou não fazer parte da lista do SUS para ser fornecido. De maneira geral, os juízes afirmam que as normas que regulam a política de medicamentos, e que portanto os incluem ou não em sua lista de distribuição, são em geral portarias, e portanto normas infra-legais de peso hierárquico menor do que CF/88, e que por isso não devem se sobrepor ao direito constitucional à saúde. Também discute-se se há obrigatoriedade de o demandante da ação ser economicamente hipossuficiente (ou seja, não possuir condições financeiras de arcar com os custos do tratamento) ou se do medicamento ser prescrito por um médico da rede pública de saúde ou conveniada a ela. Em geral, os desembargadores entendem que não há necessidade do cumprimento desses critérios.

           
Estudos acerca deste fenômeno indicam uma relação de influência entre a demanda por medicamentos via Poder Judiciário e a política de saúde. Nesse sentido, um grande número de ações que têm como pedido certo remédio pode significar a inclusão desde na lista do SUS. O contrário também é verdadeiro, ou seja, a partir do momento em que o SUS adota certo medicamento, a demanda judicial por ele cai 6. Soma-se a isso o grande impacto que tais ações têm no orçamento do Poder Executivo. Por exemplo, em 2008 foram gastos R$ 52 milhões de reais pelo Ministério da Saúde com a compra de medicamentos determinada por ações judiciais contra a União, o triplo do valor gasto em 2007. Já o Estado de São Paulo, em 2007, desembolsou R$ 25 milhões de reais por mês para atender às ordens judiciais de fornecimento de medicamentos 7.

           
Assim como a política de medicamentos, outras políticas estão sendo discutidas e/ou alteradas nas cortes brasileiras, seja justiça comum, seja na justiça federal, seja nos tribunais superiores. Fica cada vez mais evidente que o Poder Judiciário, no exercício de suas funções institucionais, também desempenha um papel político relevante, influenciando o processo de formação e implementação de políticas públicas. Esse papel, por si só, não significa uma usurpação das competências dos outros Poderes, mas só é possível graças a mecanismos presentes na própria arquitetura institucional brasileira. Trata-se de avaliar, caso a caso, as distintas composições de força, conflitos e eventuais acordos entre os diferentes atores políticos envolvidos, os quais se dão, como tais, no próprio campo da política.


1. Os direitos sociais são enumerados no artigo 6° da Constituição Federal de 1988: “São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma dessa Constituição".

 

 2. Entre os meios processuais garantidos pela Constituição Federal de 1988 podem-se citar como exemplo: o mandado de segurança individual (artigo 5º, LXIX), a ação civil pública (Lei 7.347/85, e indiretamente pela Constituição através do artigo 129, I e II, que dá legitimidade institucional para propositura desse tipo de ação ao Ministério Público) e a ação popular (artigo 5º, LXXIII).

 

  3. SCHEFFER, Mário; SALAZAR, Andréa Lazzarini e GROU, Karina Bozola (2005). O remédio via justiça: um estudo sobre o acesso a novos medicamentos e exames em HIV/Aids no Brasil por meio de ações judiciais. Brasília: Ministério da Saúde, Série Legislação n° 3, pp. 24-38. Acesso em: http://www.aids.gov.br/final.biblioteca/medicamentos_justica/medic-justica01.pdf.

 

4. Existem uma série de trabalhos que trazem como resultado esses dados. Podemos citar como exemplos: VIERA, Fabiola Sulpino e ZUCCHI, Paola. (2006). Distorções causadas pelas ações judiciais à política de medicamentos no Brasil. In: Revista de Saúde Publica, São Paulo, Vol. 41 (2), pp. 214-222; MESSEDER, Ana Márcia; OSORIO-DE-CASTRO, Claudia Garcia Serpa e LUIZA, Vera Lucia (2005). Mandados judiciais como ferramenta para garantia do acesso a medicamentos no setor público: a experiência do Estado do Rio de Janeiro, Brasil. In: Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, Vol. 21 (2), pp. 525-534.

 

5. Esta pesquisa está sendo realizada no âmbito de minha dissertação de mestrado (Programa de Pós-Graduação do departamento de Ciência Política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo), ainda não concluída. As decisões judiciais analisadas estão compreendidas entre outubro de 2007 e dezembro de 2008, encontradas por meio do sistema de busca disponibilizado no site do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ/SP) na internet (www.tj.sp.gov.br). São julgamentos em grau de recurso no TJ/SP acerca de ações propostas contra o Município de São Paulo questionando políticas sociais de saúde.

 

 6. Cf. MESSEDER, OSORIO-DE-CASTRO e LUIZA (2005). Op. cit., pp. 532.

 

  7. Triplicam as ações judiciais para obter medicamentos. Folha de São Paulo, C9, 9 de janeiro de 2009.