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DiverCIDADE 19
abril-setembro 2009

SAÚDE - DOSSIÊ SUS

MATÉRIAS

SUS 20 anos: avanços e desafios de um sistema único de saúde

Sistema do Brasil é mais próximo do inglês
Os desafios da relação público x privada do SUS

20 anos à frente: velhos e novos desafios

Descentralização, um princípio do SUS
Descentralização com foco em características regionais é saída, aponta pesquisador
Sistema de Saúde ainda convive com a falta de recursos
Cidades Saudáveis: novas formas de promover saúde
A ampliação do conceito de saúde: um outro desafio para o SUS
Conselhos aproximam a população dos administradores

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Poder Judiciário e a Política de Medicamentos, por Fabiola Fanti

ENTREVISTA

‘Atendimento ao negro pelo SUS precisa avançar’

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Vera Schattan Coelho: Saúde e democracia junta
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Descentralização, um princípio do SUS

por Tatiana Nahas com reportagem de Ana Cláudia Mielki e Tatiana Nahas

A implantação do SUS vem sendo realizada de forma gradual em todo o país. Esse processo é orientado pelas Normas Operacionais, as quais são instituídas por meio de portarias ministeriais e definem as competências de cada esfera de governo e as condições necessárias para que estados e municípios assumam as responsabilidades de gestão de saúde em acordo com as prerrogativas do SUS.

Inerente a esse processo de implantação e aprimoramento do SUS está o movimento de descentralização, que vem cada vez mais caracterizando a organização do SUS. A descentralização nada mais é que a transferência de atribuições, em maior ou menor grau, dos órgãos centrais – no caso o Ministério da Saúde – para os locais – no caso, as Secretarias Municipais de Saúde. O objetivo maior é que a população tenha acesso aos serviços de prevenção e tratamento de saúde no município mesmo em que vivem.

Esse processo de descentralização teve início a partir de 1992 com a 9ª Conferência Nacional de Saúde, a primeira após a criação do SUS, que teve o tema Descentralizando e democratizando o conhecimento: a municipalização é o caminho. Em seguida, durante a 10ª Conferência Nacional de Saúde, realizada em 1996, foi publicada a Norma Operacional Básica 01/96, que possibilitou aos municípios se enquadrarem em duas modalidades de gestão: a gestão plena de atenção básica e a gestão plena do sistema municipal.

As diferenças entre as duas modalidades de gestão estão resumidas na tabela abaixo:

Gestão plena de atenção básica Gestão plena do sistema municipal

Elaboração de programação municipal dos serviços básicos, inclusive domiciliares e comunitários, e da proposta de referência ambulatorial e especializada e hospitalar.

Elaboração de programação municipal dos serviços básicos, inclusive domiciliares e comunitários, e da proposta de referência ambulatorial e especializada e hospitalar.

Gerência de unidades ambulatoriais próprias.

Gerência de unidades próprias, ambulatoriais e hospitalares, inclusive as de referência.

Gerência das unidades ambulatoriais do estado e/ou da União.

Gerência das unidades ambulatoriais e hospitalares do estado e/ou da União.

Reorganização das unidades sob gestão pública (estatais, conveniadas e contratadas), introduzindo a prática de cadastramento nacional dos usuários do SUS.

Reorganização das unidades sob gestão pública (estatais, conveniadas e contratadas), introduzindo a prática de cadastramento nacional dos usuários do SUS.

Prestação dos serviços relacionados aos procedimentos cobertos pelo PAB1 e acompanhamento dos demais serviços prestados aos seus munícipes.

Prestação dos serviços ambulatoriais e hospitalares em seu território, inclusive os serviços de referência aos não residentes.

n/a

Normalização e operação de centrais de controle de procedimentos ambulatoriais e hospitalares relativos à assistência aos seus munícipes e à referência intermunicipal.

Contratação, controle, auditoria e pagamento aos prestadores dos serviços contidos no PAB.

Contratação, controle, auditoria e pagamento aos prestadores de serviços ambulatoriais e hospitalares cobertos pelo TFGM5.

n/a

Administração da oferta de procedimentos ambulatoriais de alto custo e procedimentos hospitalares de alta complexidade.

Operação do SIA/SUS2 quanto a serviços cobertos pelo PAB, conforme normas do MS3, e alimentação, junto às SES4, dos bancos de dados de interesse nacional.

Operação do SIH/SUS6 e do SIA/SUS, conforme normas do MS, e alimentação, junto SES, dos bancos de dados de interesse nacional.

Autorização das internações hospitalares e dos procedimentos ambulatoriais especializados realizados no município.

Autoriza, fiscaliza e controla as AIH e procedimentos ambulatoriais especializados e de alto custo.

Manutenção do cadastro atualizado das unidades assistenciais sob sua gestão, segundo normas do MS.

Manutenção do cadastro atualizado das unidades assistenciais sob sua gestão, segundo normas do MS.

Avaliação permanente do impacto das ações do Sistema sobre as condições de saúde dos seus munícipes e sobre seu meio ambiente.

Avaliação permanente do impacto das ações do Sistema sobre as condições de saúde dos seus munícipes e sobre seu meio ambiente.

Execução de ações básicas de vigilância sanitária e de epidemiologia.

Execução de ações básicas, de média e alta complexidade em vigilância sanitária e de epidemiologia.

Fonte: NOB-SUS 01/96. 1PAB = Piso Assistencial Básico (repasse financeiro definido pela multiplicação de um valor per capita nacional pela população de cada município); 2SIA/SUS = Sistema de Informações Ambulatoriais do SUS; 3MS = Ministério da Saúde; 4SES = Secretarias Estaduais de Saúde; 5TFGM = Teto Financeiro Global do Município; 6SIH/SUS = Sistema de Informações Hospitalares do SUS.

Com o modelo de descentralização, as Secretarias Municipais de Saúde ganharam autonomia e maior controle na gestão do sistema e obtiveram um repasse de verbas do Fundo Nacional de Saúde para o município. Mas a adesão ao tipo de gestão está vinculada à vontade administrativa dos governantes, o que pode explicar o fato de a maior parte dos municípios ter aderido ao primeiro tipo e nem todos ao segundo, fato que vem retardando a implantação efetiva do SUS. Por exemplo, o município de São Paulo entrou na modalidade de gestão plena apenas em 2000/2001.  

Em estudo publicado em 2003, os pesquisadores do CEM Eduardo Marques e Marta Arretche procuraram avaliar o quanto o sistema descentralizado consegue reduzir as diferenças regionais no acesso aos serviços públicos de saúde. Para isso, num primeiro momento verificaram a extensão do processo de descentralização e, em seguida, a extensão da equalização na oferta de serviços de saúde.

Eles observaram que, em 2002, 99,6% dos municípios estavam habilitados na NOB-SUS 01/96. Porém, apenas 10% destes estavam habilitados a desempenhar as atividades de gestão da rede hospitalar privada. Nos 90% restantes, essa função é exercida pelo governo estadual.

Isso indica que o processo de municipalização dos serviços de atenção básica generalizou-se no país, mas a descentralização da provisão e da gestão dos serviços hospitalares ainda é incipiente. Como a oferta de serviços hospitalares está concentrada em municípios líderes, por enquanto o sistema ainda não produziu equalização nos padrões de oferta destes serviços.

A descentralização em debate

Se por um lado o processo de descentralização garantiu a presença dos serviços básicos de saúde na maior parte dos municípios, por outro, tal modelo não deixa de apresentar percalços.

O professor Nelson Ibañez aponta que esse modelo de descentralização “que foi o de descentralizar do federal para o municipal de uma maneira quase bipolar” exacerba o papel do município que, muitas vezes, não consegue oferecer uma resposta efetiva ao conjunto do sistema, o que dificulta a realização de um dos princípios do SUS que é a integralidade. Em outras palavras, da forma como vem sendo operada, a municipalização gera fragmentação do sistema.

Quanto a isso, Ibañez propõe que as diretrizes para saúde pública sejam adaptadas às condições regionais. Em outras palavras, “é preciso diferenciar as regiões, não pode haver uma política única para o Brasil. É preciso uma política de diretriz única, mas adaptar essas diretrizes às condições regionais e tentar fazer com que isso seja um processo efetivo”, diz. Para que isso acontece o professor explica, é preciso que haja um pacto entre os municípios, tanto em relação aos investimentos, quanto do ponto de vista da integralidade dos serviços. Ibañez acredita ser preciso retomar o papel da instância estadual como articuladora dos municípios. 

Uma ação do Ministério da Saúde nesse sentido está expressa na Norma Operativa de Assistência (NOAS-SUS) de 2002, que retomou a discussão do papel da instância estadual na gestão do SUS. A criação de uma infra-estrutura guiada por políticas públicas regionais está também na concepção do Pacto pela Saúde.

A professora Virginia Junqueira, por outro lado, acredita que o problema é que o processo de municipalização não foi completado. Para ela, mesmo aqueles estabelecimentos de grande porte, que atendem pacientes de outros estados, como o Hospital das Clínicas em São Paulo, deveriam ter um Conselho de Gestão com forte participação do município. “Hoje essas instituições ainda estão sob controle da instância estadual e acontece que as secretarias estaduais de saúde não querem perder poder com a transferência de serviços hospitalares e de especialidade”, afirma Virgínia. 

Ela explica que, atualmente, mesmo os municípios de grande porte têm comando apenas sobre a rede básica, que foi municipalizada, e seus serviços próprios, o que enfraquece o poder de regulação do gestor municipal. “A municipalização de todos os serviços permitiria que o gestor municipal organizasse a rede de serviços de modo regionalizado, em um município de grande porte, constituindo sistemas locais de saúde com base territorial, compostos por hospital geral, pronto socorro, ambulatório de especialidade, centros de referência quando houver e unidades básicas de saúde. Todos estes serviços deveriam ter um único comando e estar articulados entre si.”, afirma Virginía.