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DiverCIDADE 19
abril-setembro 2009

SAÚDE - DOSSIÊ SUS

MATÉRIAS

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Sistema do Brasil é mais próximo do inglês
Os desafios da relação público x privada do SUS

20 anos à frente: velhos e novos desafios

Descentralização, um princípio do SUS
Descentralização com foco em características regionais é saída, aponta pesquisador
Sistema de Saúde ainda convive com a falta de recursos
Cidades Saudáveis: novas formas de promover saúde
A ampliação do conceito de saúde: um outro desafio para o SUS
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Descentralização com foco em características regionais é saída, aponta pesquisador

por Ana Cláudia Mielki

Um dos princípios organizacionais do Sistema Único de Saúde (SUS) é a descentralização do sistema. A idéia, desde sua criação em 1988, é a de que o SUS possa atingir o maior número de usuários possíveis numa estrutura articulada em redes de atendimento interligadas. Ao longo da década de 1990, o modelo de descentralização posto em prática privilegiou o papel dos municípios, o que permitiu uma maior autonomia dos mesmos na organização e no controle do sistema.

Há, porém, quem defenda que o modelo de descentralização direta entre União e municípios deveria ser revisto. É o caso do Dr. Nelson Ibañez, professor da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo e pesquisador do Instituto Butantã, para quem o modelo acabou gerando uma fragmentação do sistema. Ele defende o retorno do papel da instância estadual como articuladora desse sistema e propõe modelo que se baseie nas características regionais. Confira abaixo a entrevista:

 

medico

O senhor desenvolve uma pesquisa sobre Pacto pela Saúde e gestão regional e que tem relação direta com o processo de descentralização do SUS. Como o senhor vê essa questão da descentralização?

O SUS é uma proposta de sistema em que a questão federativa é importante. Porque há, já na definição da Constituição de 1988, três esferas de governo com autonomia e responsáveis pela gestão do SUS. Quando se pensa em cada esfera de governo, há várias competências e o processo de descentralização tomou um caminho regido pelo Ministério da Saúde, que foi o de descentralizar do federal para o municipal de uma maneira quase bipolar. Não que os estados não tenham participado disso, mas o estado enquanto instância ficou um pouco fora dessa descentralização.

 

Dois fatores falam contra esse tipo de descentralização: primeiro um crescimento, pós Constituinte, do número de municípios. Isso cria uma fragmentação ainda maior: outro processo, que vem ocorrendo há décadas, que é a metropolização ou a criação de grandes pólos demográficos, sociais e econômicos. Hoje no Brasil, 70% da população está localizada nas regiões metropolitanas, capitais e municípios com mais de 100 mil habitantes. No Estado de São Paulo, há 64 municípios com mais de 100 mil habitantes e eles têm 72% da população do estado [São Paulo possui 645 municípios]. Em outras palavras, 10% dos municípios paulistas comportam 70% da população. Então, se pensar do ponto de vista do que fazem os outros quinhentos e tantos municípios, chegaremos à conclusão, pensando no sistema de saúde, que o sistema não é resolutivo. O sistema municipal não consegue dar resposta aos outros princípios do SUS.

Mas não seria o caso de propor uma articulação entre os municípios?

Não é apenas uma articulação dos municípios, requer uma participação dos estados. A cooperação horizontal entre os municípios é uma coisa difícil, primeiro porque no Pacto Federativo não há relação de subordinação. Então a questão regional passa a ser uma questão importante porque é preciso estabelecer uma coordenação dos diferentes municípios, das diferentes escalas, no sentido de se criar um sistema regional que dê resolução aos outros princípios do SUS. Ou seja, os municípios pequenos têm que ter rede básica, mas eles não podem ter hospital, então outro município vai ter hospital e temos que criar um sistema em que o hospital que está no outro município vá receber o paciente. Cria-se um sistema que envolve desde rever o orçamento, rever investimentos, rever coisas para poder criar essa infra-estrutura para poder criar uma política regional, mais próxima dos objetivos do SUS. O Pacto pela Saúde entra aí.

A NOAS-SUS de 2001, que é uma Norma Operativa de Assistência, retoma a discussão do papel da instância estadual na gestão do SUS. As secretarias estaduais repassaram praticamente quase toda rede básica para os municípios e ficaram com a assistência mais hospitalar. A idéia é que o estado [unidade da federação] tenha esse papel coordenador, mas ele também não conseguiu passar toda a rede hospitalar para os municípios.

Onde  entra exatamente a pesquisa que o senhor está desenvolvendo?

Trabalhamos com tipologias baseadas em três categorias: desenvolvimento socioeconômico, dimensão política e a dimensão do resultado, que é própria do setorial da saúde. Ou seja, quanto há de leitos hospitalares, de pessoal quanto que se paga, além de levar em conta os indicadores, como indicadores de mortalidade infantil, de desenvolvimento social e econômico. Em cima dessas três categorias fizemos clusters, que resultaram em sete tipologias: de regiões fortemente desenvolvidas, que têm forte coordenação, com bons indicadores, numa escala até a pior.

Então este foi um primeiro foco do estudo: tentar caracterizar e ver, do ponto de vista da definição da região, o que era importante para caracterizá-la e para criar uma política de diferenciação da ação do SUS nas diferentes regiões. O objetivo de tudo isso é chegar a um tipo de descentralização eficiente e eficaz e que a se possa olhar diferenciando, tendo critérios de diferenciação. 

Quais seriam as saídas então para um novo tipo de descentralização?

Propomos Colegiados Regionais de Saúde, com todos os gestores municipais junto com o estado e eles sentam para discutir a situação.

Nosso estudo mostrou que há cinco tipologias de regiões no estado de São Paulo. Primeiro pesquisamos o quanto que este departamento regional é capaz de resolver os seus problemas dentro dele e quanto que ele não consegue resolver e tem que mandar para outra região. Então quanto que ele importa e quanto que ele exporta de casos dentro do sistema.

O segundo critério que procuramos trabalhar foi em relação ao sistema supletivo [planos privados de saúde]. Então, buscamos ver o número de beneficiários de planos de saúde em cada região de São Paulo e chegamos a escalas diferentes. Escalas que vão desde 50% da população em algumas regiões que têm planos de saúde, até regiões em que há entre 15% e 20% de beneficiários de planos de saúde contra 80% ou 85% de pessoas que só podem ser atendidas pelo SUS.

Outra questão é o número de médicos vinculados ao SUS, porque há uma variabilidade grande. Ou seja, tem regiões em que o médico trabalha prioritariamente para o SUS e regiões em que os médicos trabalham mais para os planos de saúde e menos para o SUS. A outra variação que a gente achou importante e que deu uma divisória e que vai construir um pouco essa tipologia é essa questão também da capacidade instalada que é diferente entre as regiões: leitos por cada mil habitantes, por exemplo.

Todos esses indicadores vão bater em cima dessas diferenças. Esse foi o primeiro trabalho que a gente fez. Criamos essa tipologia e a pesquisa demonstrou nessa primeira fase que as estruturas regionais do estado de São Paulo estão desatualizadas.

Um dos critérios que você apontou é o número de usuários de planos de saúde privado. Durante a pesquisa, foram notadas diferenças entre as regiões abordadas a partir da presença maior ou menor do sistema suplementar privado?

Essa foi uma segunda pesquisa chamada “O Pacto pela Saúde e a gestão regional em São Paulo”, projeto que a gente apresentou para a FAPESP no programa de políticas públicas. Tentamos trabalhar outro projeto de discutir o Pacto pela Saúde e a relação do público privado nas regiões. Ou seja, quanto desses fatores - da presença do privado, dos planos de saúde - interferem na organização do SUS.  Porque são vasos comunicantes, são os mesmos hospitais que às vezes atendem ao SUS e aos convênios.

Fizemos estudos de caso na região de Ribeirão Preto, num município do ABC que é São Caetano, que tem indicadores excelentes, e pegamos a região de Taubaté. Cada uma dessas dentro de uma tipologia, para ver como é que o sistema municipal se comporta frente ao regional. Tentamos conceituar o que seria esse complexo público-privado de assistência regional, tentando ver onde o público é forte, onde o privado é fraco. Onde há uma consistência maior do privado, onde o privado é muito forte e o público é fraco.

E quais foram as conclusões?

A conclusão é que impossível o Colegiado Regional trabalhar, do ponto de vista da efetividade, sem haver uma pactuação com o setor privado também. E uma regulação mais descentralizada do setor privado. Sentar-se à mesa dos prestadores e tentar pactuar, por exemplo, oferta de leitos ao SUS. Rever um pouco da questão da filantropia, da acessibilidade do serviço. Ver como organizar a relação entre o paciente [e os dois serviços]. Por exemplo, o paciente que tem plano e que é atendido pelo SUS deveria gerar um ressarcimento, ou seja, o plano deveria ressarcir o SUS. Isso não acontece. Não acontece nem de forma monetária, nem de outra forma.

Então esta é a questão: como é que regulamos este sistema?  A gente tem que pensar esse modelo de pactuação levando em consideração essas variáveis.

Nesse caso, os planos de saúde saem sempre ganhando, ou seja, acabam usufruindo do SUS com os procedimentos mais complexos?

Há uma parte que vem para o SUS e que onera o SUS numa parte de alta complexidade e também de atenção básica. Não é inviável que público e privado convivam nesta estrutura de atendimento, desde que haja regras do jogo. Essas regras – o mercado não se regula, isso não aconteceu no EUA, e aqui no Brasil não tem sentido achar que este mercado vai se autoregular – as agências estão regulando, mas é preciso pensar isso junto, precisa haver um outro tipo de regulação.