1

DiverCIDADE 19
abril-setembro 2009

SAÚDE - DOSSIÊ SUS

MATÉRIAS

SUS 20 anos: avanços e desafios de um sistema único de saúde

Sistema do Brasil é mais próximo do inglês
Os desafios da relação público x privada do SUS

20 anos à frente: velhos e novos desafios

Descentralização, um princípio do SUS
Descentralização com foco em características regionais é saída, aponta pesquisador
Sistema de Saúde ainda convive com a falta de recursos
Cidades Saudáveis: novas formas de promover saúde
A ampliação do conceito de saúde: um outro desafio para o SUS
Conselhos aproximam a população dos administradores

ARTIGO ASSINADO

Poder Judiciário e a Política de Medicamentos, por Fabiola Fanti

ENTREVISTA

‘Atendimento ao negro pelo SUS precisa avançar’

PERFIL

Vera Schattan Coelho: Saúde e democracia junta
NOTÍCIAS
> Leia últimas notícias do CEM
Entrevista

‘Atendimento ao negro pelo SUS precisa avançar’

Elza Berquó, pioneira da demografia no Brasil que continua na linha de frente dos estudos sobre saúde, avalia que a população negra é mais vulnerável, por isso precisa receber maior atenção no atendimento público.

Por Tatiana Nahas

 Elza Salvatori Berquó foi pioneira em estudos demográficos no país e contribuiu para a estruturação dessa área no Brasil e em especial para a demografia em saúde e demografia da população negra. Pesquisadora do Cebrap desde sua fundação, em 1969, e fundadora do Nepo da Unicamp, Elza já conduziu diversos estudos que forneceram subsídios para fundamentação de políticas públicas na área de saúde.

Entre as várias condecorações e homenagens que já recebeu em reconhecimento a seu trabalho, Elza esteve ainda entre as mil mulheres de todo o mundo indicadas para receber o Prêmio Nobel da Paz em 2005. “Mais do que estar lá, achei a idéia do prêmio muito positiva por trazer à tona o trabalho de mil mulheres que se destacaram de alguma forma por sua liderança, mulheres que estão trabalhando pela felicidade humana – e isso precisa de paz”, observa.

Para a pesquisadora, havia racismo quando a cor da pele era omitida das fichas e prontuários do serviço público, impedindo que o processamento dessa informação beneficiasse a população negra gerando políticas específicas. Houve avanços, mas hoje a situação das mulheres negras em idade reprodutiva continua sendo sempre pior que a das mulheres brancas. “Ainda é preciso avançar”, avalia.

Foi com muita simpatia e receptividade que a pesquisadora falou sobre algumas de suas pesquisas mais recentes em seu escritório no Cebrap. Confira na entrevista abaixo:

Sua formação e aperfeiçoamento iniciais foram em matemática e estatística. Como surgiu seu interesse pela demografia e em particular para a especialidade de demografia em saúde?

Eu fui uma boa aluna de matemática, mas trabalhar só com uma ciência exata, no campo das certezas, seria para mim um certo tratamento frio do mundo. Assim, fui me dirigindo para a estatística, porque é uma área em que se trabalha com probabilidades. Eu produzi alguns trabalhos nessa área, mas a estatística também não satisfazia porque eu precisava aplicá-la a algum campo. A demografia amplia essa abordagem estatística por trazer as ciências sociais para dentro do campo do conhecimento.

Como eu estava na Faculdade de Saúde Pública [da Universidade de São Paulo], tinha um campo fértil para aplicar minha estatística. Lá percebi que só a bioestatística não dava conta do que eu via acontecer no país, ou seja, eu precisava ampliar o campo. Como naquela época não tínhamos nenhuma pós-graduação em demografia no Brasil, senti que era preciso formar pesquisadores nessa área para constituir um grupo.

Como foi esse processo?

Contei com o apoio da Oficina Panamericana da Saúde, que enviou para cá uma demógrafa ilustre, que ficou quase um mês comigo para estudarmos a criação de um centro de população. A OPS também forneceu os recursos para formação no exterior de cinco pesquisadores de diversas áreas (medicina, economia, sociologia, antropologia e estatística) e começarmos a conduzir uma pesquisa na área de saúde reprodutiva. Cândido Procópio Ferreira de Camargo, que viria a ser o primeiro Presidente do Cebrap, fazia parte desse grupo. Assim foi criado o Centro de Estudos de Dinâmica Populacional (CEDIP), na Faculdade de Saúde Pública, o primeiro do país.

Quando estávamos nessa efervescência, veio o AI-5 e, em 1969, o economista Paul Singer e eu fomos aposentados compulsoriamente da universidade. Viemos então para o Cebrap, em um processo que teve a liderança do Fernando Henrique Cardoso e recursos da Fundação Ford. Trouxemos para o Cebrap as pesquisas que estávamos conduzindo na Universidade. Apesar de o diálogo manter-se muito intenso com os pesquisadores que ainda ficaram lá, houve uma dispersão desse grupo, uma vez que a Faculdade de Saúde Pública não honrou o compromisso de manutenção do Centro assumido com a OPS.

A sra. compõe o Comitê Técnico de Saúde da População Negra. Há questões específicas dos negros no atendimento pelo SUS, por exemplo?

Essa é uma área de estudos pela qual tenho muito apreço. Desde sua fundação, em 1982, o Núcleo de Estudos da População (Nepo) na Unicamp, criou uma área de estudos sobre a demografia do negro, o que permitiu a produção de estudos e pesquisas sobre mortalidade, nupcialidade e fecundidade da população negra no país.  Em colaboração com o Cebrap, foi preparado em 1987 um projeto sobre anemia falciforme que envolveu a preparação da cartilha “Anime-se e Informe-se” sobre essa enfermidade genética exclusiva da população negra. Essa cartilha circulou todo o país e até hoje é solicitada por gestores na área de saúde.

Um dos grandes problemas para o estudo da saúde da população negra era o fato de que os prontuários dos serviços de saúde não continham a informação sobre a cor das pessoas. Isso impedia que se fizesse estudos mais amplos contemplando a associação entre a cor e algumas enfermidades.  Esse panorama foi se modificando, impulsionado pelos movimentos negros, e a informação sobre cor passou a figurar nas fichas hospitalares, nos prontuários médicos, nos atestados de nascimento e de óbito. O racismo estava em não perguntar a cor das pessoas.

No sentido de preparar os profissionais e os gestores de saúde sobre vulnerabilidades específicas da população negra, o Comitê Técnico de Saúde da População Negra da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo realizou recentemente, em conjunto com o Nepo, um curso de metodologia de pesquisa de saúde da população negra.

Podemos dizer então que o preparo dos profissionais de saúde para a identificação dessas situações específicas e planejamento de condutas adequadas ainda está em processo no país?

Sim, ainda é preciso avançar. O teste para anemia falciforme, por exemplo, ainda não é realizado 100% das vezes em que se faz o teste do pezinho e deveria ser feito no caso de crianças negras. Na minha opinião, o teste deveria ser integrante da triagem neonatal de todas as crianças, como a verificação das demais enfermidades já contempladas no teste do pezinho.

Outro dado a ser considerado é a vulnerabilidade da população negra em termos sociais e econômicos e de acesso aos serviços de saúde. Quando trabalhamos com questões como acesso ao pré-natal, tipo de parto, consultas de puerpério, anticoncepção etc, a situação das mulheres negras em idade reprodutiva é sempre pior que a das mulheres brancas. É por isso que essa população negra precisa receber maior atenção no atendimento à saúde.

A Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde da Criança e da Mulher – PNDS, conduzida pelo Cebrap em 2006 com apoio do Ministério da Saúde, mostrou que quando se consideram as mulheres com baixa escolaridade, nas classes D e E e sem plano de saúde, 75% delas são negras. Por outro lado, das mulheres que estão nas classes A e B, que tem maior escolaridade e contam com plano de saúde, 68% são brancas. Portanto, a vulnerabilidade na população negra é flagrante.

Lendo a pesquisa de demografia em saúde da criança e da mulher de 2006, a gente nota que há diferenças para as versões anteriores. O que mudou entre a primeira versão, em 1986, a segunda, em 1996, e a mais recente?

Como é preciso garantir uma comparabilidade internacional e também nacional, a pesquisa deve manter determinadas informações e ainda acrescentar outras decorrentes do avanço técnico-científico ocorrido nas várias áreas do conhecimento, e as mudanças de comportamento de uma sociedade. Ainda, os inquéritos populacionais têm que estar preocupados com a representatividade, ou seja, a amostragem deve ser muito bem planejada no sentido de identificarmos claramente inferência para quem iremos fazer a partir do estudo. Isso não é algo trivial de se estruturar.

Além de considerar essas questões metodológicas de todos os estudos populacionais, a pesquisa de 2006 inovou em alguns aspectos. Um deles foi a estimativa das deficiências de vitamina A e retinol, processo que envolveu coleta de sangue de mulheres e crianças nos domicílios. Isso exigiu um preparo das pessoas que foram a campo, porque os procedimentos exigiam mais que o trabalho de um entrevistador. Tivemos então que fazer um treinamento muito grande com auxiliar de enfermagem para trabalhar com a técnica da gota seca, empregada pela primeira vez no Brasil.

Outro aspecto inovador foi a introdução do tema sobre acesso a medicamentos. E para as avaliações antropométricas foi necessário construir equipamentos mais apropriados para as mensurações.

E quais foram os principais resultados identificados?

Quanto à avaliação antropométrica, a comparação entre 1996 e 2006 evidenciou redução substancial do risco de desnutrição infantil, em particular, na região Nordeste e nos estrados de menor poder aquisitivo.

Com relação à taxa de fecundidade, observou-se uma queda. E, mais do que isso, 54% das mulheres na idade reprodutiva estão em regime de fecundidade menor do que 2.1, que é o nível de reposição de uma população. Então, não só a fecundidade vem caindo, como mais da metade das mulheres já está em regime de fecundidade abaixo do nível de reposição da população.

Esses dados confirmam o que já foi observado na PNAD [Pesquisa Nacional por Amostragem Domiciliar] 2004 e trouxeram ainda informações sobre a fecundidade desejada, outro diferencial dessa pesquisa. A comparação entre a fecundidade observada e a fecundidade desejada mostra valores muito próximos. Esses dados indicam que as mulheres estão conseguindo planejar melhor a sua fecundidade por meio do uso de métodos contraceptivos. Mas isso na média. Porque uma avaliação considerando região geográfica e nível de escolaridade mostra que para as mulheres das regiões Norte e Nordeste e com menor escolaridade ainda há defasagem entre as fecundidades desejada e observada.

Os resultados dessa pesquisa, em cada um dos temas estudados, foram comparados com aqueles obtidos na versão de 1996 e constam do livro “Dimensões do processo reprodutivo e da saúde da criança – Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde da Criança e da Mulher – PNDS 2006”, que foi lançado pelo Ministério da Saúde no dia 24 de novembro, por ocasião da comemoração dos 40 anos do Cebrap.

A população brasileira está envelhecendo. Quais são as possíveis conseqüências desse processo?

É preciso diferenciar longevidade de envelhecimento da população. O envelhecimento de uma população é medido pelo peso relativo daquelas pessoas com 60 anos ou mais no total de uma população. Significa que, se tomarmos o total das pessoas no Brasil que estão com 60 anos ou mais de idade e dividirmos pela população total, teremos o peso relativo dessa faixa etária na população. Na medida em que esse peso relativo aumenta, a população está envelhecendo. Mas isso não quer dizer que as pessoas estão vivendo mais. Viver mais significa ter uma expectativa de vida maior.

A queda da fecundidade faz com que cada vez mais tenhamos menos pessoas na faixa etária com menos de 15 anos. E isso faz com que o peso relativo dos mais velhos em relação à população total cresça. Então a queda da fecundidade tem um impacto no envelhecimento da população. Outra coisa é que a nossa longevidade está aumentado também. Isso significa que iremos viver mais.

Quem é o maior responsável pela queda na fecundidade no Brasil? Ela caiu entre as mulheres de pior situação econômica, menos escolarizadas e habitantes das regiões Norte e Nordeste no Brasil. Porque nos outros segmentos da população ela já começara a cair mais cedo. Não dá pra dizer que reduzir a fecundidade é bom ou ruim – esse é um juízo de valor que eu não faço –, mas a pesquisa evidencia que esse segmento menos favorecido da população está conseguindo reduzir sua fecundidade.

Na medida em que a taxa de fecundidade vai ficando cada vez menor, há a ameaça de que a população comece a diminuir em termos absolutos. Ou seja, o crescimento populacional pode se tornar negativo. Nos países em que isso vem ocorrendo, observa-se uma política de estímulo para que os casais tenham filhos.

O estudo avalia também por que a queda da fecundidade vem ocorrendo em maior grau nesse segmento específico da população brasileira?

A primeira coisa que afeta a população mais vulnerável é a falta de acesso à informação e aos serviços de saúde. Se esse acesso aumenta, a regulação voluntária da fecundidade também aumenta.

O que observamos com a pesquisa é que o repertório reprodutivo no Brasil também se modificou. Em 1996, a esterilização era a estratégia mais freqüente entre as mulheres usuárias de algum método contraceptivo. Agora, perdeu lugar para a pílula, e o preservativo também ganhou espaço nessa escolha – passou de 4 para 13%.

Como é a interface entre os resultados dessas pesquisas demográficas em saúde e a definição de políticas públicas?

Na medida em que o Ministério da Saúde lança um edital para realização de uma pesquisa com especificações de temas a serem estudados e abrangência geográfica, tem como objetivo instrumentalizar políticas públicas que atendam às necessidades da população.

A participação dos pesquisadores está em conceber o desenho da pesquisa da melhor forma, fazer um trabalho de campo cuidadoso, apresentar os resultados, disponibilizar o banco de dados e o relatório final, e divulgar os resultados. A partir do banco de dados, qualquer pessoa pode realizar comparações entre os dados dessa pesquisa com a de anos anteriores. Nosso desejo é que o maior número possível de pesquisadores utilize esse banco, há muito material para analisar sob o recorte que se desejar.

Entre outros estudos, a senhora conduziu também duas pesquisas, em 1998 e 2005, relacionadas ao comportamento sexual e percepções públicas sobre HIV/Aids, ambas com representatividade nacional. Elas trouxeram novidades capazes de impactar políticas de saúde?

Notou-se um aumento significativo no uso do preservativo entre 1998 e 2005.  De fato, esse uso passou de 19% para 33% nas relações estáveis, de 63% para 79% em parcerias só eventuais e de 24% para 46% em parcerias estáveis e eventuais.  O aumento foi maior entre os jovens, o que reflete certo sucesso nas campanhas realizadas até então pelo Programa Nacional de DST/Aids do Ministério da Saúde.

Dados oficiais recentes mostram um aumento de casos de HIV entre mulheres heterossexuais em relações estáveis, principalmente em torno dos 50 anos. Esse aumento pode ser devido ao fato de que mulheres esterilizadas, não precisando mais se proteger de uma gravidez, acabam por não se proteger contra o HIV. Outra possibilidade, é que mulheres em relações estáveis confiam nos seus parceiros.

De fato, a segunda possibilidade é uma resposta clássica obtida em estudos similares. A antropóloga Sandra Garcia, da nossa equipe, fez uma pesquisa qualitativa apoiada pelo Cebrap procurando verificar o que significa isso para essas mulheres e identificou que elas confiam que em outra relação o parceiro vá usar o preservativo. Isso indica que as campanhas oficiais devem se dirigir também às mulheres nessa faixa etária e em relações estáveis, que constituem hoje um grupo com comportamento de risco.

Com relação ao nível de conhecimento sobre formas de transmissão de DSTs/Aids, verificamos um aumento considerável. Em 2005, 90% dos entrevistados estavam bem informados sobre o uso da camisinha; eram 69% em 1998. E também a possibilidade de transmissão do vírus pelo uso compartilhado de agulhas e seringas era do conhecimento de 93% dos entrevistados, contra 60% em 1998. Houve uma melhora significativa.

Na pesquisa de 2005, estudamos também o uso consistente do preservativo em parcerias estáveis, ou seja, perguntávamos se haviam usado o preservativo em todas as relações sexuais nos 12 meses que antecederam a pesquisa. Identificamos que o uso consistente do preservativo ainda é baixo, apenas 17% dos pesquisados, e maior entre os jovens. Passando-se para avaliação de relação estável combinada com eventual, o resultado é de 28%; ainda é baixo.

Isso indica então que há um hiato entre a informação sobre DST/Aids que se tem e a prática sexual da população. Como transpor essa barreira?

É preciso trabalhar para reduzir os danos, seja quanto a atividade sexual, seja quanto ao uso de drogas. Isso inclui disponibilização gratuita de preservativos em lugares públicos, eventualmente até em escolas, para que o jovem possa ter uma vida sexual saudável sem medo e sem conseqüências negativas. O mesmo para seringas descartáveis. Da mesma forma, sou a favor da pílula do dia seguinte, nos casos em que a mulher transou sem proteção e está correndo o risco de engravidar.

Enquanto não colocarmos a informação e o acesso ao alcance de todos, estaremos em dívida com a população.  Há ainda muito preconceito e dificuldades para isso. É o caso do embate com os conservadores e fundamentalistas que não permitem o uso do preservativo.  Essa é uma luta que não ganhamos ainda.