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DiverCIDADE 19
abril-setembro 2009

SAÚDE - DOSSIÊ SUS

MATÉRIAS

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Os desafios da relação público x privada do SUS

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‘Atendimento ao negro pelo SUS precisa avançar’

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Vera Schattan Coelho: Saúde e democracia junta
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Os desafios da relação público x privada do SUS

por Tatiana Nahas com reportagem de Ana Cláudia Mielki e Tatiana Nahas

Relação entre os sistemas públicos e privados ainda carecem de regulação efetiva; um dos principais desafios ainda é garantir o ressarcimento dos planos privados de saúde ao sistema público.

As relações entre o sistema público e o setor privado de saúde no Brasil são muitas e remontam ao período anterior à criação do SUS, implantado em uma situação de preponderância do setor privado e de crise da previdência. Hoje o sistema funciona numa relação entre a vertente estatal, constituída por hospitais, redes de atenção básica, programas de saúde familiar, etc. e por uma vertente privada, contratada ou conveniada, constituída pelos serviços particulares, como hospitais, clínicas, laboratórios e consultórios, e pelos serviços prestados por planos e seguros de saúde, a chamada saúde suplementar. hospital

A interface com o sistema privado confere ao sistema de saúde brasileiro uma característica peculiar que o distingue não só do sistema modelo para o SUS, o da Inglaterra, que é totalmente estatal, como também de outros sistemas de saúde derivados deste. No Canadá, por exemplo, há o chamado sistema complementar verdadeiro; ou seja, o sistema de saúde é predominantemente estatal e o sistema privado é complementar a este, ofertando apenas os serviços não contemplados pelo sistema estatal.

Álvaro Escrivão Júnior, professor da Fundação Getúlio Vargas e um dos coordenadores do Observatório de Saúde da Região Metropolitana de São Paulo, aponta que “Essa situação é diferente aqui, onde o sistema suplementar não constitui propriamente um sistema, já que não há unidade entre as diferentes empresas que ofertam os serviços de saúde, além de não ser complementar, mas sim concorrencial com o SUS em muitas esferas de atendimento. Assim, “o sistema de saúde brasileiro é pulverizado, o que torna difícil o controle, a integração e a regulação por parte do SUS”, afirma.

As contradições entre o SUS, que se propõe universal, e as transferências de recursos públicos para os planos e seguros privados de saúde são muitas. Por exemplo, um relatório do Tribunal de Contas da União mostrou que, entre 2003 e 2007, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) deveria ter recebido dos planos de saúde um ressarcimento R$2,6 bilhões por atendimentos de média e alta complexidade prestados pelo SUS a contratantes de planos privados de saúde.

Como resolver essa situação com os convênios então? Para o médico Nelson Ibañez, livre docente em saúde pública pela Universidade de São Paulo e professor adjunto da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa, tem que haver o ressarcimento. “Caso contrário, o acontece é que se cria um sistema em que o SUS acaba sendo supletivo dos planos de saúde e ele repassa dinheiro para os planos de saúde além do gasto privado, o que onera duas vezes os cofres públicos”, diz.

A professora Dra. Virgínia Junqueira, doutora em medicina preventiva pela USP e professora da Universidade Federal Paulista (Unifesp), concorda. Segundo ela, a solução está em “aplicar rigorosamente a legislação que dispõe sobre o ressarcimento ao SUS das despesas decorrentes do atendimento de clientes dos planos nos serviços do sistema público”. A legislação a qual se refere é a Lei 9.656 de 1998, que dispõe em seu artigo 32 que as operadoras de planos privados de saúde devem ressarcir o SUS quando um contratante seu utiliza a rede pública para um procedimento que esteja coberto pelo plano.

A idéia é que a ANS tente reaver o que deixou de ser cobrado desde 1998. A professora Virgínia destaca ainda que “há instrumentos legais de regulação da rede privada que não são acionados de maneira efetiva. Isto ocasiona uma situação de opacidade do que se passa nos estabelecimentos privados”. Assim, segundo ela, “não são públicas as ‘filas’ para realização de exames de alta complexidade, as prioridades para internação eletiva, ou internação de casos de urgência que chegam a prontos socorros estatais”.

Gestão e Organizações Sociais

Outra discussão sobre a heterogeneidade do sistema está relacionada à gestão de unidades de saúde. Além da administração pública direta de unidades clínicas e hospitalares do SUS, outras estratégias vêm sendo experimentadas, como é o caso das autarquias, das organizações sociais de saúde (OS) (ver box) e das fundações.

No que diz respeito aos hospitais públicos administrados pelas OSs, por exemplo, Ana Maria Malik, professora da FGV e diretora do Programa de Estudos Avançados em Administração Hospitalar e de Sistemas de Saúde, uma parceira entre a FGV e o Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, lembra que há bons e maus exemplos tanto entre os hospitais públicos de administração direta, quanto entre os hospitais públicos com contratos de gestão.

Segundo Ana Maria, o fator de sucesso nos hospitais do segundo tipo é o fato de serem administrações privadas controladas muito proximamente pelo poder público. E é esse controle, expresso nas metas impostas pelo contrato de gestão, que coloca o imperativo de uma boa administração. “Já nos hospitais públicos de administração direta, as metas existem, mas não necessariamente são cobradas; e quando são cobradas e não são atingidas, aceitam-se justificativas”, exemplifica a médica.

Escrivão Júnior, do Observatório de Saúde, também reconhece a possibilidade de maior agilidade administrativa e melhor gestão dos recursos nesses casos, mas lembra que isso contribui para a pulverização do sistema. Assim, sintetiza, “os benefícios desse tipo de administração talvez sejam um consenso, mas a forma de se fazer isso é que é controversa, polêmica”.

Mas o modelo de OSs não é nem de longe um consenso entre os especialistas do setor. A professora Virgínia, por exemplo, acredita que “as ‘novas’ formas de gestão que vem sendo implementadas tem transplantado para o SUS a racionalidade da iniciativa privada”. Segundo ela, o que vem sendo apontado como vantagem do sistema, como a flexibilidade de contratação e demissão de trabalhadores sem concurso público, e a compra de serviços sem a exigência de licitação, representam na verdade, um retrocesso.

Um exemplo ocorre no Programa de Saúde da Família (PSF) no qual existe uma grande rotatividade de médicos nas entidades parceiras e um dos fatores que contribui para isto é o fato de tais contratações serem feitas no regime celetista (com carteira de trabalho) e não via concurso público. “Os médicos não se tornam funcionários públicos efetivos e tal situação corrói a pedra fundamental do PSF, que é o vínculo dos profissionais com a população usuária”, diz.

Organizações Sociais de Saúde

As Organizações Sociais de Saúde (OSS) são o resultado de parceria entre os órgãos governamentais responsáveis pelas ações de saúde e entidades privadas sem fins lucrativos, como entidades filantrópicas e ONGs. Essas parcerias são geralmente estabelecidas para o gerenciamento de hospitais e ambulatórios.

Em termos práticos, os gestores governamentais são responsáveis pelas obras, compra de equipamentos e entrega da gerência a essas entidades por meio de um contrato de gestão. Este acordo define as metas de produção e qualidade a serem cumpridas por estas entidades, as quais enviam periodicamente ao poder público um relatório especificando os gastos e apresentando indicadores de produção e de satisfação da população com o atendimento.

Cabe aos órgãos governamentais responsáveis pelas ações de saúde manter financeiramente estes hospitais e controlar o investimento do dinheiro público. Mesmo gerenciados por terceiros, esses equipamentos públicos de saúde continuam sendo patrimônio público. Estados como São Paulo, Pará, Minas Gerais e Bahia já adotaram esse modelo para gestão de alguns hospitais do SUS.